Aeroporto de Guarulhos é como “portão do inferno” para refugiados, diz advogada

Denúncia é feita ao ContilNet por advogada paulista em vídeos que mostram maus tratos e sofrimento por parte de estrangeiros de várias nacionalidades

A eleição de Donald Trump para um segundo mandato na presidência dos Estados Unidos tornou-se uma ponta a mais no pesadelo e nas preocupações para migrantes e defensores dos direitos humanos, principalmente em São Paulo, em Guarulhos, cujo aeroporto tem servido como porta de entrada de afegãos, indianos, senegaleses, vietinamitas e de outras nacionalidades em busca de refúgio.

Muitos desses estrangeiros, além do sofrimento em território brasileiro logo após o desembarque, têm suas entradas barradas ainda no aeroporto e muitas vêm sendo deportados de volta a seus países de origem para serem presos, torturados e mortos, denuncia uma advogada brasileira, Yara Ramtor. 

A eleição de Trump veio aumentar o temor de que essa política de migração horrorosa possa recrudescer ainda mais. O temor é que a política de combate à migração para os Estados Unidos, defendida pelo presidente que assume o cargo em 20 de janeiro de 2025, de expulsão em massa de estrangeiros ilegais do território norte-americano, se espalhe pelo mundo e contamine ainda mais governos como o do Brasil capaz de ceder às pressões de um Governo Trump cada vez com mais influência mundial na área econômica, militar e política.

Trump e seus aliados nas políticas anti-imigração para os EUA nunca esconderam que têm o Brasil como referência de ponto de parada de estrangeiros interessados em acessar o território americano.

Nic Antaya/Getty Images

Para eles, os estrangeiros usariam o Brasil para ficar algum tempo e depois darem sequência aos planos de viverem na América e daí surgiria a má vontade das políticas públicas brasileiras em relação aos estrangeiros porque, agradar os governos da maior potência do planeta, qualquer que seja o presidente, nunca é demais. Daí o temor de que, sob Trump, aumente ainda mais a má vontade dos atores da política brasileira em relação aos imigrantes, mesmo aqueles condenados à morte ou portadores de doenças graves, como HIV e outras.

Comportamento fere os princípios do Ministério dos Direitos Humanos de igualdade  

Além de temor pelas práticas políticas do futuro a partir da influência de Trump, os migrantes vivem no presente, por parte do governo brasileiro, políticas que ferem princípios do Ministério dos Direitos Humanos do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O princípio estabelece que “as pessoas refugiadas e migrantes possuem os mesmos direitos e garantias previstos para a população brasileira”.

De acordo com a Lei da Migração, de maio de 2017, aos migrantes e refugiados que estejam no Brasil estão assegurados o exercício dos direitos sociais como educação, saúde, alimentação, moradia, transporte, trabalho, lazer, segurança, assistência e previdência social, proteção à maternidade e à infância e o respeito às especificidades culturais, sem discriminação em razão da nacionalidade e da condição migratória. 

A situação dos refugiados no aeroporto foi denunciada com exclusividade para o ContilNet/Foto: Cedida

Ainda de acordo com a lei, os direitos humanos dessa população acolhida no Brasil são protegidos, inclusive, no que se refere aos direitos dos grupos com necessidades específicas de proteção, tais como mulheres, crianças, adolescentes, indígenas, pessoas LGBTQIA+, pessoas com deficiência, pessoas idosas, grupos étnicos, religiosos, e demais grupos vulneráveis, norteado pela defesa do princípio da não discriminação entre brasileiros, imigrantes e refugiados no acesso a direitos e serviços públicos. Os direitos humanos – indivisíveis, universais e inalienáveis – têm sua fonte primária e irrevogável na dignidade do ser humano.  

Na prática, não é exatamente isso que está ocorrendo no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, segundo revelou ao ContilNet, na capital paulista, a advogada Yara Ranthor, 39 anos, natural da Paraíba, uma especialista em direito internacional  que roda o mundo defendendo direitos humanos e de refugiados. Em vídeos e áudios fornecidos por ela à reportagem, o drama dos imigrantes em São Paulo são expostos com crueldade: humilhação, falta de atendimento médico, prisões e, em muitos casos, deportações.

“Muitos desses deportados, enviados de volta aos países de origem e de onde fugiram, vão ser mortos, como muitos já foram. Quem os deporta têm consciência disso e também está cometendo crime, crime contra a humanidade”, disse a advogada.

Mulher estuprada pelo Talibã, após fugir para o Irã consegui o visto dela, acabou grávida e tendo o filho no Brasil, viveu um mês na casa da advogada/Foto: Cedida

Advogada diz que ação do Brasil em relação a imigrantes precisa ser investigada por Tribunal Penal

Por isso mesmo, se o governo brasileiro, através do Ministério da Justiça, não mudar sua política de migração, principalmente a partir do caso do aeroporto de Guarulhos, ela pensa em bater às portas do Tribunal Penal Internacional, pedindo a condenação do Estado brasileiro por crimes contra a humanidade.

“Por enquanto, a nossa luta é para que o Brasil cumora a lei e se submeta aos pactos e tratados internacionais de respeito aos direitos humanos dos quais é signatário. Se isso continuar acontecendo, é o caso de se pensar em ir ao Tribunal Penal Internacional”, afirmou Yara.

“Trabalho defendendo o imigrante que serviu como como ‘mula’ do tráfico por ter sido ludibriado por grandes traficantes internacionais, os defendo na expulsão, deportação e extradição”, diz a advogada ao definir sua atuação. “Faço a sonhada naturalização brasileira, igualamos portugueses a brasileiros. Faço parte do sonho de uma mãe brasileira que tem o sonho de tirar uma criança da miséria de algum país”, acrescentou a advogada.

“Já estive. por exemplo, no Paquistão e Afeganistão, agora no retorno do Talibã em 2021, logo que se iniciou o retorno do grupo extremista. Também estive em Bangladesh, na Síria, no Haiti, e fui até a fronteira do México com os Estados Unidos, para ver de fato o que acontece com os imigrantes que vão em busca do sonho americano”, revelou.

“Estive na África e diversos outros países mas hoje a questão mais importante que nós temos a tratar é a questão da violação dos direitos humanos que estão acontecendo no aeroporto Internacional de Guarulhos em São Paulo, com pessoas vulneráveis que estão sendo tratadas como criminosas sendo algemadas e humilhadas, pessoas ficando doentes sem medicação, sendo maltratadas, simplesmente pela sua nacionalidade ou pela cor do seu passaporte. Eu posso afirmar com toda convicção porque eu já estive em vários desses locais que não é como é mostrado pelas nossas nobres autoridades ou pelo Ministério da Justiça. Não é dessa forma. Nem todo mundo que está ali é bandido  – aliás, quem é bandido, é preso com drogas ou com qualquer outra coisa; o bandido não vem pedir refúgio. O solicitante de refúgio fugiu para salvar a sua vida e para salvar a vida a gente faz qualquer coisa. Então, muitas vezes é preciso fazer trânsito em algum país para poder burlar o sistema e chegar em algum lugar e assim salvar sua vida”, disse Yara.

Advogada na Embaixada do Brasil em Bangladesh/Foto: Cedida

“Imagina que você, homossexual, em um país como Vietnam, que é comunista; imagina o que te acontece lá; imagina que você, uma mulher liberal, para a frente, moderna, num país como o Paquistão ou Bangladesh; imagina o que te acontece na África quando você se recusa a casar com um homem que você não quer, como acontece em alguns países da África; imagina aquela menina que teve seus órgãos genitais mutilados; imagina as crianças apontadas como bruxas que um dia crescem e viram adultas na Nigéria; imagina os que fogem do Sudão; imagina os nepaleses que se converteram ao cristianismo através dos missionários que estão mundo afora em um país que não aceita o cristianismo; imagina tudo isso e se coloca no lugar dessa pessoa e pensa o que é que você faria no lugar dela para salvar a sua vida”, compara. “Você viria para o Brasil, se tivesse a chance”, disse.

A advogada disse ter estado em muitos países e viveu as situações que descreveu. “Sentei com pessoas, eu conversei,  eu comi, eu vivi com eles, eu não fui tirar férias e posso afirmar com precisão que o nosso Brasil está tratando essas pessoas muito mal, de uma forma degradante e desumana ao ponto que o Brasil deveria ser investigado pelo Tribunal Penal Internacional, por crime contra a humanidade porque, para mim, isso são crimes”, denunciou.

Segundo ela, o Ministério da Justiça está se baseando em 8 mil pessoas que entraram no Brasil e pergunta: – será que já fizeram a conta ao inverso quantos foram devolvidos e foram mortos, perseguidos, presos ou estão vivendo escondidos? 

A advogada denuncia ainda que os maus tratos contra os imigrantes é baseada numa nota técnica do Ministério da Justiça, que está sendo aceita pelo governo brasileiro com força de lei para tratar da questão da migração.

“Essa Nota Técnica nada mais é do que um estudo que não seguiu qualquer trâmite legal para que se tornasse lei. O Brasil está desobedecendo todos os tratados internacionais que nós temos pactuado e cometendo crimes principalmente na calada da noite enquanto os imigrantes estão dormindo no chão, onde a polícia chega os algema e leva obrigados para um avião para o seu país de origem, onde sabe que eles vão sofrer consequências”, denunciou.

E pergunta: “Por que na calada da noite? Porque à noite ninguém vê nada, à noite não tem advogado lá dentro,  o cliente não tem tempo para ligar nada. Por que algemar se não é prisão? Por que temos que enviar as pessoas de volta ao seu país de origem antes de ouvi-las e antes que haja uma sentença, quando há um advogado agindo? Porque o Brasil é o país da impunidade e da ilegalidade. Apesar da nossa lei ser linda, o Brasil é um país que não enxerga quem são os verdadeiros traficantes de seres humanos e os verdadeiros contrabandistas de seres humanos porque estes estão sentado em uma Bela cadeira representando o Brasil em algum lugar do país do mundo e vendendo vistos para o Brasil, sabendo que a pessoa vai até os Estados Unidos com o pacote completo”, afirmou. “Acho que antes de julgar os solicitantes de refúgio às autoridades deviam ouvir suas histórias, conhecer o país dele, a cultura e procurar  saiba da política daquele país”.     

Aeroporto de Guarulhos virou uma espécie de portão do inferno para estrangeiros refugiados 

Nos dias atuais, em torno de 50 imigrantes chegaram pelo Aeroporto Internacional de Guarulhos, em São Paulo. Eles se juntaram a pelo menos uma centenas de outros que aguardavam para apresentar pedido de refúgio no Brasil.

Segundo dados da Polícia Federal, 205 pessoas permaneciam na área de desembarque do aeroporto, antes da imigração até a semana passada. Os indianos são a maioria, mas o grupo inclui vietnamitas e senegaleses.

De acordo com o Ministério Público Federal (MPF), houve problemas na plataforma digital de registros de refúgio, o Sisconare, que ficou fora do ar por alguns dias e isso dificultou o preenchimento do documento pelos imigrantes que desembarcaram no país irregularmente. 

O número de estrangeiros no aeroporto já chegou a  400 até o mês de junho. Com a retomada do sistema, o número de pessoas retidas no aeroporto diminuiu. 

A maioria dos solicitantes de refúgio que estão no aeroporto é proveniente da Índia. Há ainda cidadãos do Vietnã e do Senegal. De janeiro a abril deste ano o Brasil recebeu 19.868 pedidos de refúgio, pouco menos do que os 20.048 registrados em igual período de 2023. Venezuelanos (8.747), cubanos (4.361) e angolanos (1.226) lideram os pedidos neste período. Vietnã e Índia passaram a constar entre os cinco países de origem com mais pedidos, com 482 e 361 solicitações, pela ordem, a partir de março – em janeiro e fevereiro eles não faziam parte deste grupo.

São Paulo é a terceira cidade do país com maior número de solicitações de refúgio, atrás de Pacaraima e Boa Vista, em Roraima, onde chegam principalmente venezuelanos.

Sem local adequado para higiene pessoal – no aeroporto onde estão retidos os estrangeiros – não há chuveiros para banho e banheiros em número suficiente. Afegãos retidos no local chegaram a sofrer com surtos de piolho e sarna, além de crises de ansiedade.

Dados do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, mostram que foram analisados 140 mil pedidos de refúgio no Brasil em 2023, um aumento de mais de 200% em relação a 2022, quando foram analisados 42 mil pedidos. Os pedidos aprovados no ano passado somaram 77.300, pouco mais da metade das solicitações.

O aeroporto de Guarulhos já enfrentou crise semelhante recentemente, com a chegada de afegãos ao país. Milhares de cidadãos do Afeganistão vieram para o Brasil a partir de agosto de 2022 e vários grupos ficaram vários dias no aeroporto à espera de assistência para apresentar o pedido de permanência. Um acampamento provisório foi instalado até que as medidas fossem concretizadas. O Brasil concedeu vistos humanitários aos afegãos que fugiram do regime fundamentalista do talibã.

PUBLICIDADE