Às 10h30, toca o sinal. Crianças e adolescentes saem das salas de aula para ocupar os espaços da escola no recreio. Jogam futebol, vôlei e baralho. Outros apenas sentam em rodas e conversam. Olho no olho, sem celular.
Assim é o intervalo no Colégio Humboldt, na zona sul de São Paulo, que proibiu celulares até no recreio. Ao chegarem, os alunos colocam o telefone numa “caixinha”, que fica trancada, e só pegam no fim da aula. A cena ficará mais comum após um projeto de lei que veda os telefones nas escolas ser aprovado na Assembleia Legislativa nessa terça-feira, ‘12. O governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) deve sancionar a norma.
Em âmbito nacional, o PL 104/2015 já passou pela Câmara dos Deputados e segue para o Senado. A ideia de proibir celulares nas escolas é um dos poucos temas consensuais entre parlamentares conservadores e progressistas. É também aposta do Ministério da Educação (MEC), que espera aprovar o projeto até o fim do ano.
Pesquisas têm mostrado o prejuízo das telas para crianças e adolescentes e a medida tem apoio de 86% dos brasileiros. Escolas particulares paulistanas ouvidas pelo Estadão relatam que a implementação tem apresentado menos problemas do que era previsto. Os casos de alunos que tentam burlar a proibição foram menos frequentes do que o esperado.
Mas os desafios, claro, também se impõem, como a resistência de certos alunos, especialmente os mais velhos, que têm mais dificuldade em aceitar ficar longe dos smartphones.
Para Sophie Tenório, do 9º ano do Colégio Pueri Domus, na capital paulista, receber a notícia, em agosto, de que precisaria ficar sem o celular foi “um choque muito grande”. Ela e outros colegas, inicialmente, se sentiram controlados. “Teve muita gente que ficou chateada e falou que não precisava disso, que a escola queria tomar controle de todo mundo”, diz.
Na abstinência do celular, a adolescente relata que sentia falta de saber sobre o mundo fora da sala de aula nos primeiros dias . Hoje, porém, enxerga os benefícios de um distanciamento temporário do celular.
“Tinha aquela olhada no Instagram, no TikTok, uma postagem no Snapchat, porque hoje em dia todos temos uma necessidade de compartilhar tudo o que a gente está fazendo e ver o que os outros estão fazendo”, relata.
Agora, sem os aparelhos, ela e as amigas conversam mais e jogam jogos de cartas. Outros alunos, vão para a biblioteca, e tem até quem adiante as lições de casa para ficar livre fora da escola.
Um relato frequente das escolas é de que muitos estudantes tiveram dificuldades de se adaptar ao fato de não poderem estar em contato com os pais de forma instantânea, como para contar que tiraram nota baixa ou pedir um material que esqueceram em casa.
Para esses casos, foi preciso fazer os alunos entenderem que havia situações em que o contato não era urgente, diz Erik Hörner, diretor do Humboldt, que adotou a medida no turno da manhã.
“A partir do momento que a gente proibimos o celular, passamos a enfrentar no primeiro momento um pico de ansiedade das crianças e das famílias, que antes resolviam tudo pelo celular”, conta.
Outros problemas, de caráter “logístico”, também começam a surgir, relatam as escolas, quando os estudantes passam a não ter os cartões virtuais que costumavam usar para comprar o lanche na cantina ou quando não conseguem avisar aos pais que vão para a casa de um colega após a aula, por exemplo.
Na Escola Nossa Senhora das Graças, onde a proibição entrou em vigor no 2º semestre, alguns alunos tentavam burlar a regra pedindo o aparelho para comprar lanche na cantina, e depois tentavam não devolvê-lo, conta Sandra Cirillo, orientadora pedagógica do Gracinha, como é conhecida a escola.
“A gente precisa encontrar caminhos alternativos”, afirma Daniel Helene, coordenador pedagógico do Fundamental II da Escola Vera Cruz, que teve a experiência de adotar uma política sem celular.
“Tirar esse dispositivo de cima da mesa, e deixar ele até fora da sala, um pouco distante da criança ou adolescente, vai fazer com que a atenção dele seja mais focada e também para as relações no intervalo, para poderem interagir mais face a face e menos na interação digital”, diz a neuropsicóloga Chrissie Carvalho, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e coordenadora de projetos de desenvolvimento infanto-juvenil.
“O uso já era minimamente controlado, especialmente com o horário da aula, mas claramente depois da pandemia isso se agravou bastante. Começamos, inclusive, a ver impacto na sociabilidade das crianças, além da distração em aula, da perda de foco, da concentração. A garotada que preferia estar com o celular ou conversar na rede social do que com os colegas, de se movimentar e, às vezes, até mesmo de se alimentar corretamente”, relata o diretor do Humboldt.
Agora, segundo ele, com o banimento dos celulares os estudantes passam o intervalo brincando, praticando esportes ou conversando.
Já no Gracinha, houve tentativas de regular o uso dos smartphones sem proibi-los, pelo receio de criar “demonização” da tecnologia e com para promover uma autor-regulação dos alunos, mas não funcionou como o esperado. “A escola não é muito partidária de banimentos”, diz a orientadora pedagógica.
Mas, ao perceber que as tentativas não resolveram o problema, resolveram proibir. “Eles burlavam, deixavam o celular silencioso embaixo da carteira, no meio da aula pegavam”.
Para alguns estudante, por outro lado, ficar sem celular fez menos falta do que imaginavam. É o caso de Bernardo Krause, de 14 anos, que está no 8º ano do ensino fundamental do Colégio Humboldt, na zona sul da capital paulista. Isso porque ele já não tinha o costume de usar o aparelho com muita frequência, nem mesmo em casa.
Mas o adolescente relata que a sua experiência não é a mesma de vários outros colegas, que reclamam de não poder mexer no celular nem mesmo nos intervalos das aulas: “nem todo mundo pensa assim, eles têm o celular como uma ‘outra mão’”.
Na mesma turma, Sofia Sâmia, de 14 anos, enxerga que ficar sem celular foi positivo para o convívio social, já que, agora, ela e as amigas conversam mais. A adolescente também conta ter conhecido outros colegas com quem não conversava antes.
“Era uma coisa que me incomodava porque eu não conseguia conversar com a pessoa que estava com o celular”, afirma a adolescente.
“A gente começa a ser um pouco mais criativo, pensar em outras coisas para fazer, não só ficar no celular. Às vezes, a gente inventa uma atividade, pega um livro”, acrescenta Bernardo.
Após o término das aulas na parte da manhã, os estudantes podem pegar os celulares para almoçar e cursar as aulas extracurriculares, em que cada um tem sua própria grade. Bernardo e Sofia percebem uma diferença de interação entre o período do almoço e o do recreio, mas sentem que até mesmo no momento em que todos já estão com seus celulares de volta em mãos, o uso é um pouco menor do que antes, quando não havia a regra.
Pensando nesses benefícios, a Escola Vera Cruz, na zona oeste de São Paulo, decidiu adotar o banimento, mas de forma experimental. Foram três dias em que os celulares eram proibidos para as turmas de 6º ao 9º ano até o fim das aulas no período da manhã para avaliar quais seriam os benefícios e possíveis problemas. A experiência foi tão positiva, segundo a escola, que decidiram fazer um segundo experimento, dessa vez de nove dias letivos sem os aparelhos.
Por outro lado, ela conta ter visto alguns colegas mais ansiosos ao ficarem longe do aparelho. “Tenho amigas que não conseguem normalizar a vida sem estar com o apoio do celular, não conseguem se divertir ou ter conversas sem o celular”, afirma a aluna do 8º ano, Francisca Alegria.
A jovem diz que vê a regra de forma positiva, por estimular a socialização, desde que os celulares possam ser levados para a escola e usados após o fim das aulas. “Não levar o celular para a escola não funcionaria para mim”, ela diz, pois volta a pé para casa e precisa se comunicar com os pais. O PL aprovado na Alesp prevê que as escolas deverão criar soluções de armazenamento dos aparelhos em suas instalações.
No Gracinha, a orientadora pedagógica conta que os próprios alunos também reconheceram a melhora da dinâmica escolar: “eles reconhecem que estão mais concentrados em aula, mais tranquilos, menos agitados, que as desavenças aconteceram menos”, relata Cirillo.
Mais conversas, menos conflitos?
Estudantes ouvidos pelo Estadão que já experimentaram ficar sem os celulares relatam redução dos conflitos durante as aulas, que muitas vezes eram levados para os grupos online.
“Estamos conseguindo resolver os conflitos em sala, onde os desentendimentos são menores do que eram antes (quando aconteciam no grupo da sala no WhatsApp)”, reconhece Bernardo, do 8º ano. “Quando a gente não consegue ver como a pessoa vai se sentir, manda (a mensagem) sem pensar, não tem filtro.”
Já o diretor do Humboldt enxerga por um ângulo diferente. Ele percebeu que, em alguns aspectos, os conflitos até aumentaram nos intervalos, como na mediação do convívio dos espaços coletivos. Mas, para ele, isso ajuda as crianças e adolescentes a desenvolverem habilidades socioemocionais.
“De repente, os conflitos começam a surgir porque precisam surgir. Antes era artificial. O intervalo era mais ‘pacífico’ porque estava todo mundo ali sequestrado pelo celular. E agora eles estão vivendo os desafios da faixa etária. Conversar olho no olho, se desentender por conta de um comentário que o colega não entendeu, o mal entendido”, diz Hörner.
A escola também precisou oferecer mais opções de atividades para as crianças – como corda, bola, ping-pong – e mediar o uso dos espaços como as quadras, que passaram a ser mais disputadas.
Alunos diferentes, necessidades diferentes
Ressaltando os benefícios de maior interação social e menor tensão dos professores em fiscalizar o uso do celular, o coordenador pedagógico do Vera Cruz pondera que um desafio maior diz respeito a estudantes com condições especiais, como no caso de alunos com autismo ou daqueles com dificuldade de relacionamento.
“O recreio é uma experiência dolorosa para alunos que têm maior dificuldade de se relacionar e, por meio do celular, alguns deles se relacionavam, inclusive presencialmente, assistindo um vídeo ou jogando um jogo mediado pelo celular”, afirma Helene.
A aluna do 9º ano, Teresa de Luna, de 15 anos, é uma das que relatam uma experiência diferente da maioria devido ao transtorno do espectro autista (TEA). “Ele (o celular) é o jeito que eu tenho para me estabelecer de volta se eu tiver uma crise”, diz.
Pessoas com autismo, muitas vezes, têm mecanismos de autoregulação usados durante crises como uma forma de gerenciar as respostas emocionais e comportamentais a situações estressantes. O celular é uma das ferramentas usada por alguns nesses momentos, seja como recurso para se comunicar com uma pessoa de confiança ou mesmo por meio de jogos, músicas ou vídeos com estímulos sensoriais que acalmem a pessoa, por exemplo.
No caso de pessoas neurodivergentes, os aparelhos eletrônicos podem ser usado tanto de forma positiva – para o aprendizado, organização de rotinas ou como suporte de auto-regulação – quanto como um recurso disfuncional, principalmente pelo excesso de rede social, diz Chrissie, neuropsicóloga e professora da UFSC.
Em alguns casos, dependendo do vínculo criado com o celular, é possível tentar substituir a segurança trazida pelo aparelho por outros recursos. Se for usado como “fuga” de um ambiente estressante, por exemplo, é possível oferecer um livro, diz ela. É possível também deixar o celular do aluno em questão com o professor. Dessa forma, caso o aparelho seja necessário, o estudante pode ter esse apoio. No PL que tramita no Congresso, há regras específicas para estudantes com deficiência.
“O jovem não vai ter esse autocontrole de se restringir. Nem o adulto tem. Se parar para pensar, a gente está usando muito mais do que deveria. Esse uso responsável e controlado precisa ser dialogado dentro da família”, afirma Chrissie.
Além da escola
A regulação do uso dos celulares ajuda, mas não resolve todos os problemas. Após as aulas, os estudantes ainda podem desenvolver hábitos não saudáveis com as redes sociais.
“Os grandes problemas de vício, de se meter em problemas de cyberbullying, de agressões, de contato com pornografia: nossa experiência diz que, em geral, não é na escola que eles entram em contato com isso, mas nas redes sociais e em horários que não são esses da escola. Isso precisa ser assunto das famílias, não pode ser um assunto só da escola”, afirma o coordenador do Vera Cruz.
A neuropsicóloga Chrissie Carvalho dá sugestões às famílias em como monitorar, de forma equilibrada, o uso dos celulares pelos mais jovens:
- Deve-se fazer o monitoramento do tempo que passam no celular – especialmente à noite, para não atrapalhar o sono.
- Não basta uma quantidade de horas adequada se a criança ou adolescente tive acesso a conteúdos inapropriados, como pornografia ou grupos que incitam a violência. O teor dos acessos também deve ser próprio para a idade: uma videochamada não causa prejuízos como horas nas redes sociais.
- Adiar a entrega do celular para depois dos 10 ou 12 anos, e acesso às redes sociais para a partir dos 13 anos, de forma supervisionada, e dos 15 anos, de forma independente.
- É possível usar aplicativos que impedem a instalação de apps impróprios para a idade – como os de namoro ou com conteúdos extremistas – e que controlam as horas em que as redes sociais podem ser abertas.
- É preciso balancear o monitoramento para não impedir a autonomia dos jovens ou invadir a privacidade, especialmente na adolescência, quando passam a buscar por uma maior independência. Segundo ela, alguns pais aproveitam da justificativa de que há coisas ruins no celular para fazer um controle excessivo.
- O mais importante é o diálogo com os filhos e criar acordos entre as partes, para que eles entendam os riscos e consequências do uso abusivo das redes sociais e desenvolvam um comportamento adequado quando não estão sendo monitorados e também na vida adulta.
- É importante também observar o comportamento das crianças e adolescentes, para que as famílias percebam quando é o momento de confiar e diminuir o monitoramento, assim como para identificar “sinais de alerta” que podem ser mais danosos ao uso das redes. Alguns exemplos são jovens que têm poucas relações sociais e ficam muito tempo isolados, que têm quadros de saúde mental (como depressão, transtornos de personalidade ou transtornos alimentares), ou que sofrem bullying e estão bom baixa autoestima, por exemplo.