Aos 8 anos de idade, Luiza Erundina foi acomodada no lombo de um jegue para fugir da seca em Uiraúna, no interior da Paraíba. A menina teve vontade de chorar, mas segurou as lágrimas para não agravar o sofrimento dos pais. “Minha família era pobre e numerosa. Quando não vinha chuva, tinha que arribar para escapar da fome”, lembra.
A pequena retirante aprendeu cedo a se indignar com as injustiças. Batalhou para estudar, chegou à universidade, virou assistente social. Entrou para a juventude católica e se envolveu na luta pela reforma agrária. “Gostaria de ter feito política na minha terra, mas fui perseguida pela ditadura ”, conta. Tachada de subversiva, ela teve que mudar de ares. Por vias tortas, a repressão dava um impulso à sua trajetória.
Erundina migrou para São Paulo, onde passou a militar em movimentos por moradia. Com a redemocratização, ajudou a fundar o PT e se elegeu vereadora e deputada estadual. Em 1988, tornou-se a primeira mulher a conquistar a prefeitura da maior cidade do país.
“Minha vitória foi absolutamente inesperada. Nem meu partido acreditava”, recorda. “Enfrentei preconceito por ser mulher, por ser nordestina, por ser solteira. E por ousar disputar o poder com a burguesia paulistana. Mas nunca me intimidei”, orgulha-se.
Neste sábado, Erundina completa 90 anos. É a mais idosa entre os 593 parlamentares em Brasília. Em junho, ela passou mal ao ser provocada por bolsonaristas que se opunham a um projeto para identificar locais da repressão. Chegou a ser internada na UTI, mas logo voltou à ativa com o mesmo espírito combativo.
“As coisas estão difíceis. Este é o pior Congresso que já peguei”, critica a deputada, que exerce o sétimo mandato. “Não há mais civilidade nas relações. Vivemos um clima de confronto permanente. Há uma tropa que intimida, ameaça, põe o celular na nossa cara. Está insuportável”, desabafa.
Erundina se diz preocupada com as revelações sobre a tentativa de golpe. “É um momento muito delicado, de risco de retrocesso”, avalia. Ela considera que a ameaça autoritária não foi debelada. “Vejo o prenúncio de situações imprevisíveis daqui para a frente”, alerta.
A veterana não economiza críticas a seu campo político. Diz que os partidos de esquerda se institucionalizaram e perderam conexão com o povo. “Muitas lideranças foram para os gabinetes e se distanciaram da realidade dos trabalhadores na periferia”, afirma.
Para ela, é preciso voltar às bases e recuperar a utopia de transformação da sociedade. “Luta política não é só correr atrás de voto. É ajudar a população a se organizar e buscar seus direitos.”
Na quarta-feira, Erundina discursou por quase meia hora no Conselho de Ética. Ao rebater acusações contra o deputado Glauber Braga, colega de PSOL que teria idade para ser seu neto, disse que os deputados não são donos do poder. “Nós só exercemos o mandato. O soberano é o povo, que lamentavelmente não sabe disso”, afirmou. Foi aplaudida de pé, numa cena rara de se ver no Câmara.
No dia seguinte, perguntei como ela mantém o ânimo para enfrentar a rotina pesada de voos, reuniões e debates intermináveis. “Os sonhos não envelhecem”, brincou Erundina, que continua no mesmo apartamento modesto onde morava quando era prefeita. “A idade não tem peso nenhum para mim. Não me acomodo. Vivi e ainda vivo pelo compromisso com mudança. A esperança é revolucionária”, afirmou.
Ela diz que não disputará mais eleições, mas promete lutar “até o último dia”. “O sonho não cabe numa vida. Você parte e ele continua com as novas gerações.”