Em meio ao aumento da violência policial em São Paulo, o julgamento de casos envolvendo os agentes das forças de segurança tem andado a passos lentos na Justiça paulista. Isso tem gerado um sentimento de impunidade e frustração nas famílias das vítimas.
Neste domingo (1º) completam cinco anos da morte de nove jovens durante uma ação da Polícia Militar na favela Paraisópolis, na zona sul da capital paulista. Até hoje o caso não foi a julgamento, e todos os agentes envolvidos na operação seguem soltos.
A reportagem conversou com familiares das vítimas deste e de outros casos recentes envolvendo PMs. Em todos, há reclamação sobre a demora das investigações. Procurada, a Justiça disse que não tem informação de quantos agentes foram presos em casos envolvendo mortes de civis.
“Diante de tantas injustiças que tenho visto em outros casos semelhantes estou descrente, com muito medo da impunidade que já nos assola há cinco anos. Já é injusto conosco desde o princípio, são 1825 dias de tortura a mais cada dia que passa”, diz a pesquisadora Maria Cristina Quirino, 45, mãe do adolescente Denys Henrique Quirino da Silva, um dos mortos em Paraisópolis.
O processo atualmente está em fase de audiências na Justiça comum, que ainda vai decidir se os policiais envolvidos vão responder por homicídio doloso (quando há intenção de matar). Por enquanto, os agentes foram indiciados por homicídio culposo no âmbito militar e pela Polícia Civil.
“O processo que apura as mortes ocorridas no baile funk em Paraisópolis é bastante denso. Ele contém diversas imagens que demonstram atuação coordenada dos policiais militares denunciados, agindo com violência e confinando uma multidão naquele local”, disse para a reportagem a promotora Luciana André Dias Jordão.
Segundo ela, os laudos e depoimentos apontam que os PMs assumiram o risco de matar. Se o pedido da Promotoria for aceito, os policiais então devem ser julgados por um tribunal do júri.
“A mobilização das famílias é de extrema importância. A demora para o julgamento de fatos como este acaba gerando esquecimento”, disse Jordão.
Investigações envolvendo PMs esbarram com frequência em obstáculos processuais, muitas vezes dentro do próprio poder. Não é incomum que membros do Ministério Público sejam contrários à prisão de agentes de segurança.
Em um caso recente, por exemplo, a Promotoria foi contra o pedido de prisão na morte de um idoso. Em outra situação, conseguiu o arquivamento de um processo.
Nesse cenário, o indiciamento célere do policial militar que matou o estudante de medicina Marco Aurélio Cardenas Acosta, 22, no último dia 20 na Vila Mariana destoa de casos semelhantes. Mesmo assim, isso não é garantia de que o caso será julgado com velocidade.
A morte dele integra uma estatística que só cresce. De janeiro a setembro, um total de 474 pessoas foram mortas por PMs em serviço em todo o estado. No mesmo período do ano passado foram 261 mortes, o que significa um aumento de 81% na letalidade.
Após críticas da família ao governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), houve o anúncio do indiciamento do soldado Guilherme Augusto Macedo, 28, pelos policiais do próprio batalhão em que ele atua, por homicídio doloso.
Não houve pedido de prisão. O inquérito na Polícia Militar ainda não foi enviado para o TJM (Tribunal de Justiça Militar). A Polícia Civil também investiga a morte. Pai do jovem, o médico Julio Cesar Acosta Navarro, 59, disse que vai lutar para que a morte do filho sirva para evitar outras tragédias.
Seis meses antes, o aposentado Clovis Marcondes de Souza, 70, foi atingido por um tiro enquanto caminhava na rua Platina, no Tatuapé. Naquele momento, policiais abordavam uma moto, quando um deles atirou. A investigação do caso segue sem desfecho.
O autor do tiro alegou disparo acidental. Ele foi indiciado por homicídio culposo no TJM.
Inconformados, a esposa e os filhos de Souza pediram à Justiça comum a prisão preventiva do policial. A Promotoria foi contrária ao pedido, e o juiz negou a prisão. O policial está afastado.
De acordo com o pesquisador do NEV (Núcleo de Estudos da Violência) da USP Bruno Paes Manso, os inquéritos policiais normalmente acabam ficando muito ligados ao testemunho do policial, porque ele acaba sendo o responsável pela descrição do fato e raras vezes há testemunhas.
“A tendência do Ministério Público e do Judiciário é considerar o policial como um testemunho de fé pública, e isso acaba dando um peso maior no testemunho dele, do suposto tiroteio, da legítima defesa, e isso faz com que os crimes acabem sendo arquivados”.
Paes Manso explicou que quando há elementos e pessoas dispostos a contrapor a narrativa da polícia o caso pode ser investigado, mas muitas vezes o policial acaba sendo inocentado no tribunal do júri -responsável por casos de homicídio doloso.
A investigação da morte de Edneia Fernandes Silva, 31, mãe de seis filhos que foi atingida por um disparo de um PM em Santos, no litoral paulista, segue rito semelhante. Um policial foi indiciado perante o TJM mas, segundo a defesa da família, a acusação não foi encaminhada ao processo na Justiça comum e o caso está parado. Ela morreu há oito meses.
“É um caso que ainda não foi fechado, e daqui a pouco pode cair no esquecimento, pedem um arquivamento e vai ficar por isso mesmo”, desabafa Givaldo Manoel da Silva Júnior, 33, viúvo de Edneia. Ele deixou o emprego para cuidar da casa e dos seis filhos, e conta que o pedido de indenização à família ainda não foi analisado. “Vivi 17 anos com a minha mulher, e não consigo dormir pensando no que aconteceu.”
Já na investigação da morte do menino Ryan da Silva Andrade Santos, 4, também atingido durante uma abordagem da PM em Santos, ainda não se sabe o autor do disparo. No dia seguinte à morte, a própria corporação afirmou que o tiro provavelmente tinha partido dos policiais.
Entre os casos com uma decisão já tomada está o do estoquista Rafael dos Santos Tercílio Garcia, 32, morto em 24 de setembro do ano passado. O são-paulino, que era surdo e mudo, comemorava o título da Copa do Brasil no entorno do estádio Morumbis, quando foi atingido na nuca por um disparo de munição do tipo bean bag, uma espécie de saco de pano que envolve esferas metálicas, usadas pela PM.
Ainda em 2023, um inquérito da PM concluiu que houve homicídio culposo por parte do policial. A Polícia Civil teve o mesmo entendimento um ano depois. O Ministério Público, no entanto, não encontrou indícios para processar o cabo e pediu o arquivamento. O juiz discordou e encaminhou o caso para apreciação do procurador-geral de Justiça, Paulo Sérgio de Oliveira e Costa, que concordou com a Promotoria. O processo foi arquivado.
“Injustiça o que estão fazendo. Mataram meu filho e vai ficar por isso mesmo. Hoje não tem justiça para policial. Eles são liberados para fazer o que querem. O Ministério Público dá plenos poderes para eles fazerem o que querem”, disse Vilma Custódio dos Santos, mãe de Rafael.
“Não se pode dizer que este ou aquele promotor age dessa forma. A questão é cultural e, por isso, penso que é muito mais profunda”, diz o ex-promotor Roberto Tardelli, hoje advogado criminalista. “Há uma identificação entre a polícia, principalmente entre a Polícia Militar e o Ministério Público.”
“Essa identidade e identificação causa uma natural ‘aceitação’ da polícia e de seus atos. Eles vêm pré-justificados, como se houvesse uma presunção de legitimidade nas ações da PM, mesmo que nas mais violentas”, acrescentou Tardelli.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública disse que as forças de segurança investigam de forma rigorosa os casos mencionados, contando com a atuação conjunta da Polícia Civil, Polícia Militar e órgãos de controle externo. “Em todos os casos, as instituições reforçam o compromisso com a transparência, o respeito às leis e a apuração criteriosa para responsabilizar eventuais envolvidos”.