José Miguel Wisnik, no livro “Veneno Remédio”, defende que o futebol se diferencia por ter um “tempo mais distendido, alargado e contínuo” do que os demais esportes, permitindo “uma margem narrativa que admite o épico, o dramático, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico”.
Sergio Rodrigues, no romance “O Drible”, cria uma cena inesquecível em que o pai mostra para o filho uma série de lances, um pior do que o outro, do jogo entre Brasil e França na Copa do Mundo de 1958. É uma das maiores partidas da história, mas o pai prefere exibir aquilo que ela teve de ordinário. Quando o filho pergunta por quê, ele responde: “Não é o pior pedaço. É a vida. O jogo normal. Futebol é assim: o caos”.
O tempo distendido, sem interrupções contínuas, aproxima o futebol da vida – o mesmo que faz essa constante dança entre tédio e espanto, esse permanente ziguezague entre a beleza e a dor. É o caos: a sucessão de pequenas decisões que determinarão se sairemos de casa em uma manhã qualquer para descobrirmos nosso grande amor ou para sermos atingidos por um ar-condicionado que despenca do vigésimo andar. “Football is life”, ensina outro pensador, o adorável Dani Rojas da série Ted Lasso.
Fiquei pensando nisso tudo ao ver Palmeiras x Botafogo, o jogaço valendo a liderança (e talvez o título) do Campeonato Brasileiro. O Botafogo tem um ótimo time, jogou o futebol mais bonito do país no ano e merece ser campeão, da mesma forma que o Palmeiras, com toda sua competência, organização e resiliência. E quando eles se encontraram, o jogo foi decidido por uma sucessão de acasos – o caos, a vida.
O Botafogo abriu o placar em um escanteio marcado de forma equivocada pela arbitragem. Na cobrança, Gregore ocupou um espaço na área por pensar que se tratava de uma jogada ensaiada, mas na verdade era outra, e ele não deveria estar lá. Mas estava, e foi nele que a bola foi parar, e foi ele que completou para o gol.
Veio o segundo tempo, o Palmeiras tentava reagir, o Botafogo conseguia manter o jogo sob relativo controle, e aí Marcos Rocha resolveu dar um tapa em Igor Jesus. Foi expulso. Instantes depois, explorando justamente o vazio daquele espaço que o lateral ocupa em campo, antes que Abel Ferreira pudesse colocar alguém por lá, o Botafogo fez o segundo gol, com Savarino. E ainda faria o terceiro, com Adryelson, que só estava em campo porque Bastos se lesionou.
E se não fosse aquele escanteio? E se Gregore não tivesse entendido errado a jogada ensaiada? E se Marcos Rocha não tivesse sido expulso? E se Bastos não tivesse se lesionado? Que espetáculo de esporte.
O caos seguirá presente na próxima rodada, a penúltima, que pode terminar com o Botafogo campeão (não será surpresa) ou com o Palmeiras novamente líder (não será surpresa). O clube carioca terá jogo duríssimo, fora de casa, contra o Inter, o melhor time do returno – e que ainda tem esperança de título. O clube paulista não terá vida muito mais fácil: encara o Cruzeiro no Mineirão.
Antes disso, o Botafogo viverá a final da Libertadores, sábado, contra o Atlético-MG, em mais um jogo para a eternidade – e que sempre poderá ser decidido por uma deliciosa sucessão de acasos, por esse caos que aproxima o futebol da vida.