Os Quatro da Candelária, série de ficção da Netflix inspirada na chacina que aconteceu no dia 23 de julho de 1993 numa das mais famosas igrejas do Rio de Janeiro, está no top 1 do streaming, e o caso voltou a despertar curiosidades. O massacre terminou com oito crianças e jovens mortos, de idades entre 11 e 19 anos. Os dois policiais envolvidos no crime e um ex-policial foram condenados, presos e soltos anos depois.
Sobrevivente da chacina, José Luiz dos Santos, conhecido como Snoop Amado, 46 anos, trabalhou como produtor e consultor da série. Ele, que tinha acabado de completar 15 anos na época do ocorrido, depois morou três anos fora do país no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas — e levou consigo traumas inesquecíveis que carrega na memória até hoje.
O personagem inspirado na história de Snoop é o do adolescente Jesus (Andrei Marques), destaque no quarto episódio da trama. Marques divide o protagonismo da produção com Patrick Congo (Sete) e os estreantes Samuel Silva (Douglas) e Wendy Queiroz (Pipoca).
Snoop assumiu parte da seleção do elenco e deu detalhes da sua história para Luis Lomenha, diretor da série. Os dois já haviam trabalhado juntos na série documental Sob Traçantes (2018), do canal Futura, que fala sobre histórias de superação de pessoas que já viveram em situação de violência extrema. Ele admite que ficou muito emocionado ao rever parte da sua trajetória exibida ao longo dos quatro episódios de Os Quatro da Candelária.
“Chorei muito, foi muito difícil, superar não tem como”, diz, em conversa com o Estadão. “Me derramei vendo a série porque são momentos muito cruciais para mim. E se não fosse minha esposa ao meu lado, talvez eu não suportasse, eu largaria tudo. Ainda que seja importante para a sociedade, a gente contar, relatar, denunciando, abre feridas [relembrar o passado].”
Uma das exceções em meio à realidade sofrida de crianças e jovens que vivem nas ruas e acabam morrendo precocemente, Snoop se recuperou e refez sua vida após voltar ao Brasil e ser acolhido em uma instituição filantrópica administrada por um casal de idosos, que cuidava de 70 crianças na época.
“A ideia do juiz era que eu ficasse ali por quatro anos e depois vivesse minha vida. Eles me colocaram para estudar, me ensinaram, me deram a oportunidade de conhecer a música, a arte. Na escola, eu conheci minha esposa. Já estamos há vinte e quatro anos juntos”, conta ele, que é pai de dois filhos, de 7 e 22 anos, e trabalha atualmente como assistente administrativo da produtora Kromaki, que junto com a Jabuti Filmes, de Luis Lomenha, realizou o projeto da série da Candelária para a Netflix.
Sua trajetória no audiovisual começou anos atrás, quando ele trabalhou como motorista para produções da Globo e Record. Foi na segunda emissora em que ganhou o apelido de Snoop, após os atores das novelas bíblicas da casa notarem sua semelhança com o rapper Snoop Dogg.
Foi lá, também, que ele começou a trabalhar como assistente de produção. “Tinha um elenco de idade na Record, e eu sempre procurava ajudá-los a subir na van, sendo cordial, e isso chamou a atenção da produção. Chegou ao ponto que o elenco só queria ir trabalhar só na minha van, do estúdio para o set de filmagem. Aí foi uma oportunidade de virar assistente de produção lá na Casablanca da Record”, detalha ele, que trabalhou em novelas como O Rico e Lázaro (2017) e Jesus (2018).
Agressões e estupros na infância
Abandonado aos 5 anos pela mãe no Juizado de Menores, Snoop nunca conheceu seu pai e não tem lembranças da genitora. De um documento deixado no local, a única informação é que ela se chamava Miriam dos Santos e que eles viviam debaixo de um viaduto no Centro do Rio.
De lá, antes mesmo de cometer qualquer infração, foi levado para a Funabem – fundação de resgate a jovens infratores, extinta em 1989, conhecida por ser um local de violência extrema contra crianças e jovens. Desde muito novo, Scooby conheceu de perto a agressão física e abuso sexual – ainda criança foi estuprado quatro vezes nessas casas de recuperação que deveriam protegê-lo. “Tentaram me matar diversas vezes. Era melhor ficar nas ruas para sobreviver”, explica.
“Com 5 para 6 anos me largaram na Funabem. Por qual crime? Qual era o delito? E me largaram lá. E daquele dia, em 1983, até a chacina da Candelária foram anos de sobrevivência. Fui torturado nas ruas, torturado no orfanato, fui baleado, esfaqueado… Fui parar lá sem ter cometido um delito, aí depois sim tive que cometer para sobreviver”, conta.
Nas ruas, ganhou o apelido de Escorrego, pois passava óleo de cozinha no corpo para ficar com o corpo escorregadio para escapar se a polícia tentasse pegá-lo.
Dos abrigos e casas de recuperação, incluindo o Instituto Padre Severino – centro de reclusão para menores – ele carrega traumas que nunca serão esquecidos.
“Lá na Funabem começou a tortura, tortura de profissionais que eram chamados de educadores, inspetores, e ao longo dessa trajetória, foi num desses abrigos que houve as brutalidades cometidas por internos. Sempre foi a lei dos mais fortes que prevalecia”, explica.
Com apenas 7 anos, fugiu da Funabem com Sandro Nascimento, que anos mais tarde, em 12 de junho de 2000, ficou nacionalmente conhecido pelo sequestro do ônibus 174, no Jardim Botânico, zona sul do Rio. Exibido ao vivo na TV, o crime teve um desfecho trágico, com a morte da professora Geisa Gonçalves, feita refém por Nascimento. Ele morreu momentos depois, asfixiado na viatura da polícia.
Escorrego passou ainda, em 1987, pelo abrigo conhecido como Cidade dos Meninos, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, criado em 1940 pela então primeira dama, Darcy Vargas, mulher de Getúlio Vargas. O local foi condenado anos depois pelo Ministério de Saúde pelo solo ter sido contaminado por HCH, pesticida conhecido como pó de broca, produzido na mesma área que acolhia crianças órfãs, o que acabou contaminando algumas delas.
Algumas crianças recebiam as visitas das mães aos fins de semana. José Luiz ficava ansioso aguardando, mas a mãe nunca apareceu. Com o passar dos anos, ele perdeu a esperança de reencontrá-la.
“Para uma pessoa em situação de rua, ao longo dos anos, sobreviver é muito difícil, por conta das doenças, da saúde precária, então, para mim é muito difícil alimentar essa esperança”, diz.
O sobrevivente da chacina da Candelária demonstra o sofrimento pela ausência materna, e, ao mesmo tempo, a compreensão por ela ter sido uma das milhares de pessoas que vivem invisíveis para a sociedade, em situação de vulnerabilidade.
“Eu nem sei se realmente o nome [dela] seria Miriam, porque ela chegou [ao Juizado] e não se identificou, com certeza devia estar com medo, ou se sentiu coagida e foi embora, porque ela teria que me registrar, e não tinha condições. Teria que me levar ao médico, porque a saúde estava precária, então ela sentiu coagida e foi embora”, conclui ele.