Há gente que vira símbolo. É o caso de Chico Mendes, o seringueiro, sindicalista e ativista político que nasceu há 80 anos, em 15 de dezembro de 1944 — e foi assassinado em 22 de dezembro de 1988.
Reconhecido no Brasil e no mundo, ele empresta nome a uma importante autarquia federal de proteção ambiental, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). E virou passarinho.
Em 2013, foi descoberta uma nova espécie de ave na região do rio Madeirinha e os cientistas decidiram batizá-lo de Zimmerius chicomendesi — na nomenclatura popular, poiaeiro-de-chico-mendes.
As homenagens não são por acaso, porque os ideais de Mendes são “atemporais”, diz à BBC News Brasil o gestor ambiental Erivan Ribeiro Rodrigues, filho de extrativistas e analista ambiental no ICMBio.
Rodrigues diz que isso se tornou mais claro a partir dos anos 1970, quando começou a ficar evidente ao mundo todos os possíveis riscos para a humanidade que os desequilíbrios ambientais poderiam causar.
“Atualmente, o problema principal continua o mesmo: a harmonia entre o homem e a natureza”, diz o analista.
“Acrescia-se à sua época a luta pela garantia do território, onde os seringueiros pudessem extrair o látex, plantar e colher, mas também manter o seu modo de vida, criar seus filhos e manter sua família sem que a escória do capitalismo os incomodassem.”
A figura de Chico Mendes, porém, está longe de ser unanimidade entre os brasileiros e segue provocando discussões mesmo após tanto tempo.
Pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o historiador Victor Missiato diz que “a disputa pela memória é sempre um espaço de confronto” e, no caso de Mendes, ele acredita que há um “consenso social” sobre sua luta, mas não há um “consenso político”.
“Isto se dá pelas polarizações que vivemos nos últimos tempos”, avalia ele, à BBC News Brasil.
Parte da direita o menospreza — ou o despreza. Quando era ministro do Meio Ambiente na gestão de Jair Bolsonaro, Ricardo Salles afirmou que falar sobre Chico Mendes era “irrelevante”.
“Ele usava os seringueiros para se beneficiar, fazia uma manipulação da opinião [pública]”, afirmou Salles.
Essa polarização parecia estar latente já no período em que Mendes era vivo. Ele chegou a afirmar, por exemplo, que “ecologia sem luta de classes é jardinagem”.
Em 2013, a bancada ruralista rechaçou a proposta de dar o nome de Chico Mendes ao plenário onde foi instalada a Comissão da Amazônia, na Câmara.
Os principais críticos do tributo foram os deputados Moreira Mendes e Paulo César Quartiero. Para eles, a história do ativista não passava de “uma farsa” e homenageá-lo na Câmara seria “infeliz escolha”.
Mas Chico Mendes pode hoje ser classificado como “ambientalista”, sem cair no anacronismo — ou seja, tentar encaixar sua atuação com base em valores atuais?
A resposta não é tão simples.
O historiador Sérgio Roberto Gomes de Souza, professor na Universidade Federal do Acre (Ufac), sugere um esforço para “sermos ucrônicos”.
O ucronismo é a referência a um período hipotético da história, em tempo não claramente definido. Isso é: perceber como as “outras temporalidades convivem”.
“Se analisarmos os movimentos liderados por Chico Mendes perceberemos que, mesmo com muitas conquistas, alguns elementos de opressão e exploração que combateram se expressam no tempo presente. Dito isso, talvez seja importante, inicialmente, ressignificarmos os debates sobre preocupações ambientais”, diz Souza.
Para o historiador, a chave passa por desconstruir o que ele chama de “estigma de vazios” da Amazônia.
“Neste caso, não haveria a dicotômica entre humanos e natureza, mas sim a percepção de que existem diferentes relações entre eles. Isto implicaria em mediações. Teríamos que aprender sobre respeito aos outros saberes e fazeres e que esta pluralidade de vidas poderia nos ensinar como proceder”, argumenta.
Chico Mendes defendia a criação de reservas extrativistas, onde seriam permitidas apenas atividades não predatórias e a geração de renda para os seringueiros e extrativistas sem devastar a floresta.
“Mas, talvez, como escreveu o próprio Chico: ‘Desculpem, eu estava sonhando quando escrevi sobre estes acontecimentos, que eu mesmo não verei, mas tive o prazer de ter sonhado'”, acrescenta Souza.
Jurado de morte
Nascido em Xapuri, cidade perto da fronteira do Acre com a Bolívia, o ativista teve a vida abreviada porque incomodou muita gente — diretamente, grileiros de terra da região.
Em 22 de dezembro de 1988, exatamente uma semana depois do seu aniversário de 44 anos, foi executado com um tiro no peito. Ele estava nos fundos de sua casa.
“No Brasil, quando alguém telefona e diz que você vai morrer, não é somente uma ameaça, mas a afirmação de um fato. Você foi jurado de morte”, escreve o jornalista americano Alex Shoumatoff no livro O Mundo em Chamas — A Devastação da Amazônia e a Tragédia de Chico Mendes.
Chico Mendes, segundo a obra, foi jurado de morte em 24 de maio de 1988, quando soube “que estava liquidado”.
“Era o líder de um movimento de raízes, surgido entre centenas de milhares de trabalhadores que ganhavam a vida extraindo a seiva das seringueiras espalhadas pela floresta tropical, e seu nome despontava como uma das principais figuras do esforço internacional para salvar a Amazônia”, escreveu Shoumatoff.
O jornalista relata que o ativista já havia sobrevivido a cinco atentados, a esta altura, e estava com a vida em risco desde 1980.
Ele contextualiza lembrando que, na época, não havia “mais do que 130 fazendeiros em todo o Acre” e, “mesmo assim, esses poucos fazendeiros expulsaram da floresta, com seus pistoleiros, dezenas de milhares, talvez centenas de milhares de seringueiros”. Era uma verdadeira guerra.
“Chico Mendes não ficou surpreso ao receber o chamado anônimo informando que ele não viveria além daquele ano”, pontua o jornalista.
“Na noite de 22 de dezembro de 1988, ele foi morto por um tiro de espingarda no peito ao sair para o quintal de sua casa, quando se dirigia para o chuveiro.”
Dois anos depois do assassinato de Chico Mendes, em dezembro de 1990, a Justiça condenou os fazendeiros Darly Alves da Silva e seu filho, Darci Alves Pereira, a 19 anos de prisão. Réu confesso, Darci foi o autor do disparo que matou o ativista.
Ambos fugiram da cadeia em 1993 e foram recapturados três anos mais tarde.
Em 28 de fevereiro deste ano, Darci Alves Pereira, hoje conhecido como pastor Daniel, assumiu a presidência do Partido Liberal (PL), mesma legenda do ex-presidente Jair Bolsonaro, no município de Medicilândia, no Pará.
Quando a notícia se espalhou, a cúpula do partido resolveu destituí-lo do cargo.
À imprensa, Darci afirmou: “Já paguei pela minha vida do passado”.
A tática do ‘empate’
Filho de um migrante cearense, Chico Mendes nasceu em um seringal acreano.
Aprendeu o ofício ainda criança, porque costumava acompanhar o pai nas incursões pela mata.
Foi alfabetizado apenas aos 19 anos — segundo relato dele próprio, aprendeu as letras por meio de um militante comunista que morava em Xapuri.
O início do ativismo político e ambiental de Mendes coincide com o auge da ditadura militar e o plano político de ocupar agressivamente a Amazônia.
Com o incentivo à pecuária na região, os seringueiros passaram a sofrer por conta da especulação imobiliária. E, claro, a devastação ambiental, porque era preciso passar a boiada, também passou a afetar diretamente o trabalho extrativista dos seringueiros.
“Com a expansão capitalista para a Amazônia a partir de outras perspectivas, durante o período do regime da ditadura militar, o Estado brasileiro reproduziu um discurso constituído pela modernidade desde o século 16, ou seja, a caracterização dos espaços das Amazônias enquanto vazios”, contextualiza o historiador Sérgio Roberto de Souza, da Ufac.
Na busca de legitimidade para a exploração dessas regiões, diz o pesquisador, foram ignoradas as populações que já viviam ali há pelo menos a 10 mil anos.
“Assim, com o aval do Estado brasileiro, expropriam terras e eliminam vidas e vivências, levando a processos intensos de resistências e existências”, diz Souza.
Em 1975, Mendes se tornou secretário-geral do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia, município no sul do Acre.
Já consciente do problema ambiental resultante do desmatamento fora de controle da floresta, ele passou a integrar e incentivar a luta dos seringueiros em prol do meio ambiente.
Foi quando se intensificaram os eventos da tática conhecida como “empate” — em que os manifestantes, pacificamente, protegiam as árvores com seus próprios corpos, impedindo o prosseguimento das derrubadas.
“Este ato expressa uma profunda concepção de pertencimento, de uma relação efetiva e afetiva com os territórios sociais onde viviam”, afirma Souza.
O historiador argumenta que essa atuação de Mendes revela um movimento “muito além de ecológico”, que vai lutar por manutenção de modos de vida e luta por existência.
O analista ambiental Erivan Ribeiro Rodrigues elenca essas manifestações pacíficas entre os pontos altos da trajetória de Mendes.
“No seringal Cachoeira, em uma tarde sombria, Chico Mendes e outros seringueiros, juntamente com mulheres e crianças, embrearam na mata rumo ao acampamento dos trabalhadores que iriam iniciar a derrubada”, relata.
“Cabe lembrar que ele já estava jurado de morte e ainda assim se fez presente diante de jagunços e policiais para empatar a derrubada.”
Este seringal havia sido comprado pelo mandante de sua morte, o fazendeiro Darly Alves, acrescenta Rodrigues.
Para o cineasta Sérgio de Carvalho, autor do filme Empate, sobre o legado do ativista, que estreou este mês nos cinemas, Chico Mendes ainda fascina por “sua compreensão da urgência de trazer a Amazônia para a pauta do mundo”
“O que mais me fascina é a contemporaneidade das ideias e da estratégia de luta do Chico, como ele continua sendo muito atual e muito importante”, diz Carvalho.
“Ele deixou pistas para a gente lidar com essas questões. E sua capacidade de comunicação, de articular e trazer as pessoas mais diversas à sua luta, também era impressionante. O Chico era o porta-voz maior.”
Principalmente por conta dos tais empates, o sindicalista Wilson de Souza Pinheiro (1933-1980), então presidente do sindicato de Brasileia, foi assassinado. Era um prenúncio do futuro de Chico Mendes.
Mendes também organizou ações em defesa dos povos originários, para que eles tivessem suas terras reconhecidas. Em 1977, fundou um sindicato semelhante ao de Brasileia em sua Xapuri natal. Em seguida, foi eleito vereador — pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que fazia a oposição ao governo ditatorial.
Foi nessa época em que começou a receber as primeiras ameaças de morte.
Embora o caso nunca tenha sido registrado, há relatos do próprio e de terceiros de que ele tenha sido preso e torturado em 1979.
Chico Mendes foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1980 — dois anos depois, e também em 1986, seria candidato a deputado estadual, mas não conseguiu se eleger.
Em 1985, quando foi criado o Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), o discurso de Mendes requerendo a preservação do modo de vida desses profissionais extrativistas passou a ecoar mais longamente.
A essa altura, ativistas indígenas, seringueiros, castanheiros, pequenos pescadores e ribeirinhos já estavam juntos, lutando pela criação de reservas extrativistas — que preservariam as terras indígenas, as florestas e ainda promoveriam a reforma agrária.
Para o historiador Souza, este esforço em conjunto com outros grupos é um dos grandes legados de Mendes, pois possibilitou que indígenas, ribeirinhos, extratores, pequenos produtores rurais — populações que tiveram históricas relações de conflito — se unissem em defesa de seus direitos.
Em 1987, o ativista recebeu em sua casa uma comitiva da Organização das Nações Unidas (ONU).
Foi quando botou a boca no trombone: sem pestanejar, denunciou os projetos que, segundo ele, estariam levando ao fim a Amazônia.
A repercussão foi tamanha que organismos como o Senado dos Estados Unidos e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) passaram a olhar atentamente para a questão.
Poucos meses depois ele receberia o prêmio Global 600, oferecido pela ONU por conta de seu ativismo ambiental.
No seu último ano de vida, participou da implantação das primeiras reservas extrativistas no Acre e viu sua perseguição intensificada enquanto percorria o país dando palestras e participando de eventos.
Rodrigues afirma que Mendes viveu sob “constante anunciação de sua morte”. “Imagino que nunca antes na história das investigações policiais houve tantas denúncias e provas vindo da própria vítima indicando quem seria o seu algoz”, comenta.
O funcionário do ICMBio avalia como marcante uma frase escrita por Chico Mendes a respeito de seu trágico fim.
“Se ao menos tivesse certeza de que minha morte serviria para fortalecer a luta pelos meus compatriotas, esta valeria a pena. Mas a experiência me diz o contrário, então quero viver”, registrou o ativista ambiental.
Influência sobre Marina Silva
Nascida em um seringal no Acre, a ambientalista Marina Silva, atual ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, engajou-se na luta de Chico Mendes no início dos anos 1980. No ano em que o ativista foi assassinado ela foi eleita para seu primeiro cargo público: foi a mais votada vereadora do município de Rio Branco, capital do estado.
No último dia 15, quando Mendes faria 80 anos, ela lembrou o companheiro em suas redes sociais. “Sua existência, precoce e dolorosamente interrompida, nos marcou e ainda marca”, escreveu a ministra.
“Sua vida, semelhante a chama de uma poranga, ajudou a clarear ideias na direção de novos caminhos e a ampliar a luta socioambiental na defesa da floresta, dos povos indígenas e das comunidades tradicionais que dela dependem para viver”, afirmou.
Marina relatou que muitos perguntam a ela o que seria de Chico Mendes hoje. A ministra costuma responder que “ele continuaria na luta por todas as florestas somadas à defesa que sempre fez de sua companheira de identidade, vida e luta, a floresta amazônica”.
“Mas estaria se sentindo mais amparado, por ver o quanto sua luta se ampliou”, comentou. “Ele veria muita gente ao seu lado”, disse ela, mencionando as múltiplas formas “que sua singular forma de defender a Amazônia e seus povos ganhou, na academia, nas tribunas e púlpitos, nos momentos sociais, de gênero, juventudes, nos meios de comunicação, denunciando os crimes que ainda hoje são cometidos não só contra a floresta, mas também contra os povos indígenas e comunidades tradicionais que vivem na região.”