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Gilson: Chico Mendes foi o mais íntegro que conheci e morreu na pobreza partilhando o que ganhava

Por Gilson Pescador, ContilNet

Era início da noite de 22 de dezembro de 1988, em Xapuri. Estava na sede do sindicato dos trabalhadores rurais com Chico Mendes (para nós era só o Chico), tratando de assuntos da entidade e do meu casamento no sábado, com a xapuriense Amira Virgília, de cujo enlace o amigo seria o padrinho, juntamente com a amiga e comadre Ilzamar Mendes, sua mulher. No dia seguinte sairíamos com a toyota do sindicato para uma colônia buscar um boi, presente de casamento do companheiro de luta. E assim fomos cada um para sua casa.

Chico Mendes/Foto: Reprodução

Em minha casa, na rua da Gaveta, se encontravam Amira e Ângela, esposa do Agamenon do Basa, fazendo docinhos e salgadinhos para a celebração simples que se realizaria no sabado, com poucas pessoas e rapidamente. Chico foi para sua casa humilde, de madeira velha, perto da sede, para descansar um pouco com sua família, cuja história todos já conhecem.

Uma semana antes, no dia 15, na casa da família de Walter Nicácio, homem valoroso que entregou a casa onde vivia na cidade como apoio incondicional à luta dos seringueiros, Chico passava seu aniversário com Júlio Nicácio, seu amigo, leal e corajoso companheiro de luta, que, nesta oportunidade, lhe entregou uma toalha verde de banho, em nosso nome.

Sim, Chico Mendes já era uma personalidade mundial, mas não tinha uma toalha decente para tomar banho e enxugar o suor de sua luta, razão de que qualquer coisa que recebia dividia com o movimento popular. Ilzamar e os pequenos Elenira e Sandino viviam na penúria, praticamente.

Mal havia chegado em casa, quando um então companheiro de luta chegou de bicicleta gritando: “atiraram no Chico”.

No velho hospital trancamos a grade. O povo lá fora aos gritos e desesperado pedia informações. Fiquei só por horas com o corpo do Chico totalmente desnudo, cravejado de chumbo e ensanguentado. Ilzamar na outra sala em estado de choque e desorientada, gritava aos prantos.

Mais tarde, naquela noite de inverno chuvoso, seguimos pela estrada lamacenta para Rio Branco, levando o corpo do Chico para autópsia no IML, na ambulância, acompanhado com Irmã Zélia. Fiquei novamente só naquela madrugada triste, enquanto o legista fechava o corpo do companheiro e me entregava para os funerais. Fomos para a Catedral, para orações e homenagens dos amigos e simpatizantes da Capital. Após, no avião do estado, o piloto e eu levamos o corpo no caixão para Xapuri. Só se ouvia o barulho dos motores. Tudo mais era silêncio.

Muito se falou de Chico Mendes após sua morte, mas pouquíssimos sabiam de sua vida e estavam ao seu lado nos momentos mais difíceis e fatídico. Aqui, e nesta data que Chico completaria oitenta anos, uma homenagem especial à Família Nicácio, sem a qual a luta de Chico não teria o êxito e a repercussão que teve. Naquela época, quando a luta dos seringueiros e pela preservação da floresta eram vistas como subversivas e marginais, uma família da cidade colocar sua casa e envolver seus membros num apoio sem medida, de maneira despojada e heroica, carece de justas homenagens.

Chico foi assassinado, porque não tinha sequer um banheiro dentro de casa. Foi ao sair, com a toalha verde nas costas, no escuro, que levou o covarde tiro fatal. Ele tinha fama e prestígio nacional e internacional para viver muito bem, seguro e confortavelmente, mas morreu na pobreza, ao partilhar tudo que ganhava, absolutamente tudo.

Chico Mendes foi a pessoa mais íntegra que conheci, até então. No verde da toalha o sangue do mártir. Chico Mendes vive nos corajosos e abnegados, mas em seu nome hoje muitos parecem viver bem e em paz.

Gilson Pescador

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