As 48 horas até a saída de Damasco, capital da Síria, em direção a Beirute (Líbano), foram extremamente tensas para o corpo diplomático da embaixada do Brasil, relatou ao GLOBO o embaixador do Brasil na Síria, André Santos. No sábado, um bombardeio israelense provocou danos no Consulado brasileiro, e na segunda-feira, quando um comboio de 17 veículos — integrado também por representantes diplomáticos da Argentina, Chile, Cuba, Espanha, Venezuela e Bulgária — se preparava para partir, membros de uma milícia local “fortemente armada”, relatou Santos, “nos interpelou, mostrou suas armas e, após algumas dificuldades de comunicação, entendemos que não queriam que deixássemos Damasco”.
O homem que abordou o embaixador e demais diplomatas brasileiros, disse Santos, “parecia estar drogado, com os olhos vidrados e vermelhos”.
— Já estávamos colocando as malas nos carros quando fomos abordados por uma milícia fortemente armada. Um deles me interpelou, mostrou a arma e perguntou em árabe o que estávamos fazendo e quem éramos. O motorista da embaixada fez a tradução e entendemos que eles não queriam que saíssemos de Damasco. Expliquei que estávamos cumprindo nossas funções, e que não era uma retirada definitiva — comentou Santos, por telefone, de Beirute.
Direitos das mulheres
Os membros da milícia que interrogou o embaixador questionaram o fato de as mulheres que estavam no comboio não terem seus cabelos cobertos. Este seria um dos sinais em Damasco, afirma o embaixador, de que, após a queda de Bashar al-Assad, “são prováveis os retrocessos em matéria dos direitos das mulheres”.
Rebeldes tomam Damasco e anunciam fim do regime Assad
O trajeto que une Damasco à capital do Líbano costuma demorar entre duas e duas horas e meia, mas, na última segunda, o comboio demorou cinco horas. A fronteira, contou o embaixador, “estava tumultuada”. Por uma gestão feita pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, o comboio de diplomatas foi acompanhado por um carro das Nações Unidas. Do lado libanês, diplomatas destinados em Beirute aguardavam para dar apoio ao grupo.
A decisão de retirar todos os diplomatas brasileiros foi tomada no domingo, após bombardeios israelenses no sábado. Até então, Santos pretendia ficar em Damasco. Mas o impacto do que chamou de “explosivos de alta potência” num país que ficou sem sistema de defesa antiaéreo após a queda de Assad levou o embaixador a pedir a retirada total.
— O bombardeio israelense foi especialmente violento, em momentos em que os grupos armados já estavam na periferia de Damasco — relata o embaixador. — Israel usou explosivos de alta potência, que fizeram balançar a estrutura de nosso complexo. Uma janela no primeiro andar e uma área do setor consular foram danificados.
Segundo o diplomata, o impacto foi tão forte pelas ondas de choque desencadeadas pela explosão:
— Estava lá, e vi algo que nunca tinha acontecido. Porque bombardeios anteriores atingiram lugares a 500 metros da embaixada, mas, neste caso, o alvo estava a 3 quilômetros. A questão é que não existe mais defesa antiaérea, e sofremos as ondas de choque de uma maneira que nunca tínhamos sofrido. Foi bastante assustador.
Nos últimos dias antes da queda do regime, a tensão ao redor das embaixadas aumentou muito. Na semana passada, deixaram o país as delegações da Sérvia e Hungria. Grécia e Espanha vinham se preparando havia vários dias e adiando o que finalmente aconteceu após a queda de Assad. Segundo o embaixador brasileiro, “grupos armados tentaram invadir a residência diplomática de Cuba, chegando a quebrar uma janela, entrar e ameaçar levar objetos. O embaixador, que depois esteve em nosso comboio bastante tenso, teve de intervir. Ele impediu a invasão”.
— Outro grupo invadiu a missão italiana. Nesse caso houve roubo de um automóvel blindado, e uma quantia de dinheiro em torno de US$ 4 mil. No sábado, a embaixada da Indonésia foi ameaçada, mas ficou nisso. Os rebeldes ficaram dando tiros pro ar, numa atitude de intimidação — afirma Santos.
Vida em Damasco
Agora, de Beirute, o embaixador acompanha a situação por meio de seus funcionários locais e pessoas conhecidas em Damasco. O governo brasileiro ainda não teve contato com as novas autoridades do país, já que, de acordo com Santos, está esperando a nomeação de um novo ministro das Relações Exteriores.
Pelos relatos que tem ouvido, o embaixador comentou que “os bancos reabriram, a moeda síria foi estabilizada em 15 mil liras para cada US$ 1, quando tinha chegado a 20 mil, e se percebe um esforço para que as coisas voltem a um nível de normalidade”. Mas há sinais contraditórios:
— Há notícias de saques, violência, sequestros. Por um lado, tentam convencer a população a agir normalmente, vemos movimentação de pessoas na rua, circulação de táxis e, por outro lado, manifestações de grupos que saem em caminhonetes abertas e atiram pro ar, num gesto de poder, embora isso tenha sido proibido — conta o embaixador.
Segundo ele, a “ expectativa é de que o Hayet Tahrir al-Sham (HTS)”, no comando do novo governo, “consiga impor uma ordem mais abrangente. Que cidadãos e grupos armados respeitem as regras básicas de convivência”.
— Uma parte da população está temerosa, e mesmo a parte que apoia os novos dirigentes também se sente ameaçada, porque um tiro desse pro ar, quando a bala volta pode matar alguém — aponta Santos.
Equação complexa
O futuro da Síria, frisa o embaixador, “ainda é uma grande incógnita”, e os diplomatas brasileiros só retornarão ao país “quando houver um quadro institucional restabelecido, um mínimo de normalidade e segurança”.
— Neste momento, temos [na Síria] não somente os grupos armados, mas também tropas estrangeiras da Turquia, Israel, Estados Unidos e Rússia.
Essa presença passará a ser ilegal? — indaga o embaixador, referindo-se, por exemplo, à situação das bases militares russas, incluindo uma base naval em Latakia.
Para Santos, derrubar o governo de Assad uniu grande parte dos grupos que participaram da ofensiva contra o ex-ditador, mas não todos. Hoje, diversos grupos armados convivem na Síria, com diferentes interesses. Os curdos, exemplificou o embaixador, localizados no nordeste do país, querem autonomia e enfrentam a resistência da Turquia.
— Com a queda de Assad, você tirou um fator da equação, mas é uma equação extremamente complexa, com atores internos e externos, cada um com interesses antagônicos — diz Santos.
Para ele, “estabilizar a Síria, também do ponto de vista econômico, é um enorme desafio:
— O que sempre consideramos é que esses grupos são todos financiados por alguém. Quando deixarem de ser interessantes, ou já tenham cumprido seus objetivos na cabeça desse financiador, esse financiamento pode ser cortado.
Em seus primeiros dias no Líbano, o embaixador e seus colaboradores têm tentado armar o quebra-cabeças que permita entender como a ofensiva rebelde derrubou Assad em tão pouco tempo, algo que, enfatizou Santos, “era impossível de imaginar”:
— Continua sendo uma incógnita saber os meandros do que levou a essa ruptura tão rápida. Estamos tentando armar esse quebra-cabeças para entender um pouco mais o que ocorreu e ter uma ideia do que vem por aí.