Prestes a completar 70 anos de idade, a gaúcha Cristina Ávila, que há mais de quatro décadas vive na Amazônia, encarna e encerra em si a máxima de que, uma vez repórter, sempre repórter. Ao ler sobre sua atuação em mais de 40 anos de profissão, sempre tendo como causa a defesa do meio ambiente e das populações tradicionais, lembrei do amigo Edilson Martins, acreano que se tornou jornalista no Rio de Janeiro, foi preso pela ditadura militar quando ainda era muito jovem e que, a despeito das torturas físicas e mentais que enfrentou, conseguiu manter a lucidez de ser cada vez mais um democrata radical e um defensor intransigente da causa indígena.

A repórter gaúcha segue os passos do acreano Edilson Martins, que escreveu, nos anos 1970, Nossos Índios, Nossos Mortos/Foto: Reprodução
Autor de uma obra definitiva sobre o assunto, Nossos Índios, Nossos Mortos, Edilson Martins e Cristina parecem irmãos siameses, diferenciados apenas pelo sexo. Cristina Ávila está escrevendo, como Edilson o fez lá atrás, ainda nos anos de chumbo, sobre a resistência indígena, já relatada por ninguém menos que o antropólogo Darcy Ribeiro. Ele viveria repetindo, meio que assombrado: “Como eles conseguiram? É quase incrível, mas ela [uma comunidade étnica] resiste a qualquer condição inimaginável de repressão e de perseguição, se não há uma destruição física ou um desgarramento e total isolamento de seus membros.” Mesmo isolados, muitos ainda resistem. Cristina Ávila também. Edilson Martins também.
E escrevendo.
A história de Cristina Ávila veio a público por meio do site Metrópoles, de Brasília, pela amiga da jornalista Conceição Freitas. São dela as palavras a seguir: “Ser repórter de verdade não é uma profissão, é uma imposição que nasce do lado de dentro. Grandes repórteres são inquietos, perguntadores, desbravadores, de algum modo destemidos. Dos que conheci de perto, a mais intensa e ininterruptamente repórter é uma gaúcha criada nos pampas e que, achando pouco a amplidão da savana do sul do país, foi muito jovem morar na Amazônia.”
Segundo a amiga, Cristina Ávila, a repórter, está perto de completar 70 anos, dos quais mais de 40 foram dedicados à reportagem. “Somos amigas há mais de 30, e, desde então, não me lembro de um dia em que ela não estivesse em estado de reportagem, pensando, apurando, escrevendo, sempre como se quisesse correr na frente do tempo. Nesse instante, Cristina está arranchada numa aldeia indígena, na Terra Indígena Cachoeira Seca, dos Arara, à margem do Rio Iriri, no Pará”, revela.
“Desde que, nos anos 1980, deixou o Sul e foi parar em Rondônia, Cristina se especializou em questões indígenas. Trabalhou em jornais de Porto Velho e no Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, braço de defesa dos povos originários dentro da Igreja Católica. E, porque uma coisa leva necessariamente à outra, Cristina se dedica também ao meio ambiente, desde muito antes de este ser um tema-limite para a sobrevivência do homo sapiens na Terra”, acrescentou.
De acordo com Conceição, “Sua pauta (a de Cristina) mais recente, mais longa e trabalhosa é uma pesquisa que começou há mais de dez anos: o impacto da abertura da Transamazônica nos povos indígenas, sendo os Arara um dos mais solapados pela estrada aberta durante a ditadura militar.”
Para reunir o material que irá compor o livro-reportagem, Cristina já viajou de ônibus, pau-de-arara, balsa, naviozinho, rabeta (pequena canoa motorizada) e de Niño, que vem a ser um Uno 2001 adaptado para ser um minúsculo motorhome, no qual cabem um colchonete, um fogãozinho, uma mesinha para trabalho e um bagageiro – este talvez o mais importante dos acessórios. Nele, vão as peças de roupa femininas, de muito boa qualidade, que ela recebe das amigas. São encomendas que as indígenas esperam ansiosamente – correm para a beira do rio ao ouvir o po-po-po-pó da rabeta, conta a amiga.
“Nas quatro viagens que já fez a Altamira e agora à aldeia dos Arara, Cristina comeu carne de macaco, tripa de tartaruga, tracajá e todo tipo de peixe, refeição frugal dos indígenas, que, na falta de mais vasilhas, às vezes comem em prato coletivo, acocorados no chão, cada um com sua colher. Embora esteja na aldeia por autorização do cacique, não é fácil estabelecer uma conversa com os indígenas, que, pouco acostumados com os não indígenas, são meio desconfiados, na deles, e não dão muito espaço para conversa”, escreveu.
Coisas positivamente inesperadas acontecem: entrevistando Akitu Arara e, em dúvida sobre como escrever o nome, Cristina pediu a ele a carteira de identidade. No verso, estava grudada uma foto. Era de um dos mais importantes sertanistas brasileiros, Sidney Possuelo, levando pela mão um garoto indígena quase adolescente, nos anos 1970 – o próprio Akitu, no primeiro contato com o homem branco. Cristina fez a foto da foto, mandou imprimir no papel e deu de presente a um emocionado Possuelo, que mora em Brasília.
O making of do livro-reportagem de Cristina Ávila, segundo a amiga Conceição, daria, por si só, outro livro. “Tenho tido a honra de acompanhar, de longe, essa corajosa incursão a um micropedaço da história recente dos povos originários da Amazônia e de como eles têm resistido há mais de 500 anos de tentativas de extermínio.”
A perplexidade de Darcy Ribeiro é a de todos nós. Que vivam Cristina Ávila, Edilson Martins, Conceição e a resistência dos povos indígenas de toda parte!