Um desabafo sobre a urgência de transparência nas ações policiais em um Estado democrático

Recentemente, fui chamado às pressas para atender um cliente preso sob a alegação de que estava vendendo uma arma de uso permitido em um grupo de WhatsApp. Os detalhes da ocorrência, que me foram repassados no caminho, já revelavam indícios de graves violações de direitos. Ao chegar ao local, armado apenas com a Constituição Federal e as prerrogativas garantidas aos advogados, deparei-me com uma cena que infelizmente é corriqueira: a aplicação arbitrária da lei, regida não pela justiça, mas pela conveniência e pela ausência de responsabilização dos agentes públicos.

De imediato, comecei a registrar tudo com meu celular e pedi à pessoa que me acionou para continuar filmando. Essa atitude simples, mas essencial, é muitas vezes vista como afronta pelos policiais, que frequentemente intimidam ou confiscam celulares para apagar registros de suas ações. Ao me apresentar como advogado, exibi minha carteira da OAB e iniciei questionamentos diretos, embasados nos artigos 5º, XI (inviolabilidade do lar) e 133 (independência da advocacia como função essencial à justiça) da Constituição Federal.

A narrativa construída pelos policiais já estava repleta de contradições. A prisão ocorreu na rua, mas a arma foi encontrada dentro da residência. Perguntei sobre o mandado de busca e apreensão, inexistente. Perguntei se houve consentimento do morador para entrar na casa, também negado. Questionei sobre resistência à prisão ou tentativa de fuga, ambas descartadas. Era evidente que estávamos diante de uma violação flagrante ao direito constitucional da inviolabilidade domiciliar.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é clara ao reiterar que “o ingresso forçado em domicílio sem mandado judicial é ilícito, salvo situações de flagrante delito devidamente justificadas e documentadas” (Ministro Fux, enquanto presidente do STF em 2022 – Link: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=9820340 ). Não havia justificativa legal para aquela invasão, tampouco para a prisão posterior de um segundo cidadão, que, com seu filho no colo, foi conduzido sob o argumento de estar “envolvido” na ocorrência. A motivação real? A audácia de sua esposa em registrar os abusos. Ele estava na rua, solto, circulando e poderia ter ido embora a todo momento. Sua prisão só se deu no fim da abordagem policial, quando perceberam que o mesmo era marido da pessoa que filmava.

Esse comportamento truculento e retaliatório é inaceitável. A prisão de retaliação é um ato de vingança institucionalizada, algo que deveria causar horror em qualquer sociedade democrática. Como já bem apontou Luiz Flávio Gomes, “a seletividade penal brasileira não escolhe os mais perigosos, mas os mais vulneráveis” — e, nesse caso, a vulnerabilidade estava associada à condição econômica dos envolvidos, moradores de periferia.

Na delegacia, a confissão de um policial (em segredo e com tom de escárnio para o segundo que fora preso) sobre a motivação da segunda prisão escancarou o despreparo e a arbitrariedade da ação. O homem foi preso porque sua esposa “ousou” buscar assistência jurídica e documentar a abordagem policial.

Esse episódio reforça a urgência de uma mudança estrutural nas práticas policiais. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu regras para o uso obrigatório de câmeras corporais em ações da Polícia Militar de São Paulo, com o objetivo de registrar todas as operações em tempo real. Segundo a decisão do ministro Edson Fachin, relator do caso, as gravações têm como finalidade garantir transparência e preservar direitos fundamentais, permitindo a reconstrução objetiva dos fatos em caso de abuso ou omissão.

Essa determinação, fundamentada no artigo 37 da Constituição, que exige a publicidade e eficiência da Administração Pública, traz um marco histórico para o controle das ações policiais no Brasil. No entanto, sua implementação enfrenta resistência em diversos estados, onde ainda prevalece uma cultura de opacidade e de práticas violentas que permanecem impunes.

O uso de câmeras corporais em São Paulo já demonstrou resultados positivos, com a redução significativa de mortes em intervenções policiais, conforme dados apresentados durante a análise do caso. É inaceitável que um recurso tão simples e acessível ainda não seja uma norma nacional. Como já afirmou Zaffaroni, “o sistema penal não é apenas um sistema de controle social, mas de dominação social”.

É claro que a polícia em geral não age assim, mas a quantidade de exceções vem ganhando uma grande proporção. A truculência policial, mascarada de “manutenção da ordem”, é um sintoma de um problema estrutural. A ausência de treinamento adequado, o desconhecimento das normas constitucionais e a cultura de impunidade criam um cenário de caos jurídico que só prejudica os cidadãos mais vulneráveis.

Na audiência de custódia, consegui a liberdade de ambos os presos, sem nem mesmo a necessidade de monitoração eletrônica. Mas o sentimento de vitória veio acompanhado de um gosto amargo. Quantas outras prisões arbitrárias, motivadas por retaliação, continuam ocorrendo longe dos olhos da justiça? Quantos inocentes ainda serão submetidos a constrangimentos ilegais antes que haja uma reforma estrutural e ética nas forças policiais?

Durante a audiência de custódia, fiz um desabafo ao juízo, expressando minha indignação com a flagrante violação de direitos que presenciei. Informei que anexaria aos autos os vídeos e fotos que documentavam as ilegalidades cometidas, além de encaminhá-los ao Ministério Público e à Corregedoria da Polícia, na esperança de que medidas cabíveis fossem adotadas. Contudo, também manifestei meu ceticismo, reconhecendo que, como tantas outras vezes, tais denúncias dificilmente resultariam em punição efetiva, dado o histórico de corporativismo e a forma como muitos agentes públicos protegem uns aos outros, perpetuando a sensação de impunidade.

A advocacia criminal, que para muitos é um sacerdócio, não pode ser vilipendiada pelo despreparo e pela arbitrariedade daqueles que deveriam zelar pela ordem e pelo respeito às leis. Não é aceitável que a defesa de direitos constitucionais seja tratada como afronta ou que advogados sejam intimidados no exercício de suas funções.

Encerrando, reitero meu compromisso com a justiça, mas não com essa falsa justiça seletiva que perpetua a desigualdade e a violência institucional. Meu desabafo é um clamor por uma polícia mais preparada, que respeite as leis que jurou defender e que trate todos os cidadãos com a dignidade que lhes é devida.

Enquanto houver advogados, haverá resistência. E enquanto houver resistência, haverá esperança.

Roraima Rocha é Advogado; sócio fundador do escritório MGR – Maia, Gouveia & Rocha Advogados; Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Gran; Especialista em Advocacia Cível pela Fundação do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP); Membro da Comissão Prerrogativas, e Presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB/AC.

 

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