Quando a história começa, uma mulher está deixando os filhos gêmeos na casa da própria mãe, numa aldeia miserenta de um país em guerra. A situação para eles não vai ser fácil: “Nós a chamamos de Avó. As pessoas a chamam de Bruxa. Ela nos chama de filhos de uma cadela”, diz o narrador de “O grande caderno”, da húngara Ágota Kristóf. Ou melhor: os narradores. Neste primeiro volume da “Trilogia dos gêmeos”, Kristóf adota a primeira pessoa do plural para iniciar a saga. É um recurso raro e intrigante que reforça, afinal, a ideia de que os meninos são uma só persona, unidos para o que vier.

Longe do lúdico, meninos da trilogia de Ágota Kristóf são obrigados a crescer antes da hora — Foto: martijn hendrikx/unsplash
Mesquinha, imunda, maligna, a Avó atazana a dupla — que, por sua vez, adapta-se à dureza da vida recorrendo ao que chamam de “exercícios”. Para aprender a resistir à dor, um espanca o outro; para não sucumbir à fome, ficam sem comer; para fortalecer o espírito, xingam-se mutuamente. “De tanto serem repetidas, as palavras vão gradualmente perdendo o significado, e a dor que elas carregam se atenua”, atestam os narradores, cujos nomes não são mencionados nesta primeira parte da trilogia.
Como se vê, a violência psicológica dá o tom da conversa. A guerra real passa ao largo, até porque a guerra dentro de casa é mais cruel e urgente. Os gêmeos se ligam nisso logo cedo: têm só 9 anos de idade quando caem na real. Sua infância não terá sorrisos nem brinquedinhos. Para além dos perrengues domésticos, na rua cruzarão com personagens bizarros, demasiado humanos, aprendem a ganhar dinheiro, a amar do seu jeito e até a matar (mas, neste caso, apenas quando estritamente necessário).
Ensinamentos literários
A narrativa de Kristóf é seca, objetiva, e é com ela que os garotos aprendem (e nos ensinam) a registrar pensamentos em seu grande caderno: “As palavras que definem os sentimentos são muito vagas; é melhor evitar seu uso e se ater à descrição dos objetos, dos seres humanos e de si mesmo, ou seja, à descrição fiel dos fatos.” Eis aí algo mais útil do que muitos manuais que pregam o bom letrismo…
Tanto quanto seus gêmeos, Ágota Kristóf muito nos abre caminhos em matéria de literatura. Seus diálogos são diretos, seus personagens têm sangue, cheiro e pegada, a narrativa corre livre como tem que correr, sem sentimentalidades nem poesia mimizenta, sem deitação de regras ou falsidade. Nada emperra nada.
Assim, sem pressa, Kristóf cozinha o leitor até o fim desconcertante do primeiro volume da trilogia, um desfecho daqueles que ficam na memória do leitor anos a fio. E que, claro, abre caminho para sua sequência, “A prova”, em que descobrimos os nomes das criaturas e acompanhamos sua juventude, não menos intensa que a infância. “A terceira mentira” arremata a trilogia dando um nó na cabeça do leitor — mas a verdade é que comentar sobre esses dois últimos volumes é um tanto arriscado, pois tudo está intrinsecamente relacionado à surpresa que encerra o primeiro livro.
Digamos apenas que, ao fim da leitura da “Trilogia dos gêmeos”, poderíamos criar aqui metáforas geniais para interpretá-lo, subestimando a inteligência do leitor, mas o que deve ficar claro é: a literatura de Ágota Kristóf é pessoal, intransferível e, portanto, inigualável.
E a moral da história? Qualquer uma — ou nenhuma. A vida é o que é, e vamos em frente. Essa “mensagem”, digamos assim, tem a ver até mesmo com a trajetória de Kristóf. Nascida em 1935, a escritora deixou sua Hungria aos 21 anos, escapando da intervenção militar e política soviética. Refugiou-se na Suíça, criou sua (curta) obra em francês e foi bem festejada até morrer, em 2011.
Publicada inicialmente entre 1986 e 1991, a “Trilogia dos gêmeos” saiu no Brasil nos anos 1990, e agora volta em hora boa para reflexões sobre guerra, terror e brutalidades afins. Na época, saiu também “Ontem”, que bem poderia ganhar nova edição brasileira.
A propósito, vale registrar que a Editora Nós lançou aqui, ano passado, “A analfabeta”, em que Kristóf narra seu exílio, a família, o início de tudo. É uma narrativa autobiográfica curta, longe de ter o mesmo impacto literário da trilogia, mas que ajuda a explicar como a autora conseguiu tecer as histórias e o estilo que tornaram os seus gêmeos dois dos mais originais e intrigantes personagens da literatura do século XX.