A suspensão nesta semana de 34 alunos do Colégio Santa Cruz por bullying teve uma repercussão muito além do estabelecimento de ensino em Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo. A descoberta de abusos por adolescentes do ensino médio contra colegas mais novos em um estabelecimento educacional de elite mostrou que atos de crueldade nesta faixa etária não só continuam a existir como se estenderam das salas de aula e do recreio para um ambiente virtual muitas vezes à prova de fiscalização dos pais e responsáveis.

Alunos do Colégio Santa Cruz em campo de futebol — Foto: Divulgação
A escola pode determinar novas punições. A suspensão em massa ocorreu após a instituição acessar o “drinha”, corruptela de “quadrinha”, um grupo inicialmente criado para organizar partidas de futebol. Mas que se tornou um espaço onde veteranos do 3º ano organizavam festas e trotes com novatos do 1º ano, e praticavam bullying, humilhações e racismo. A comunidade reunia mais de 200 meninos, conforme alunos e o colégio relataram ao GLOBO.
Nem o grupo nem os trotes eram novidade entre os estudantes. De acordo com os alunos, era sabido que ao chegar ao 1º ano eles seriam chamados a participar do drinha. Os veteranos organizavam festas com dinheiro recolhido via Pix junto aos novatos. Uma das histórias que circulavam era de que um novato foi agredido por se recusar a contribuir.
Um ex-aluno ouvido pelo GLOBO, acompanhado do irmão mais novo recém-chegado ao primeiro ano, contou que os trotes serviam para integrar as turmas, mas nunca tinha visto nada como os casos “assustadores” deste ano. Outro, que integrava o grupo e saiu após o caso vir à tona, confirmou que as mensagens de cunho racista e homofóbico eram comuns, mas diz que os temas eram minimizados.
O GLOBO teve acesso a vídeos que os novatos tinham de produzir para enviar no grupo. Em alguns, eram orientados a falar qual a sua posição sexual favorita ou a se mostrar apenas com a roupa de baixo. Em outros, um dos veteranos diz o nome de uma garota que seria seu “alvo”, estimulando os colegas a entrarem em uma disputa para saber qual “conseguiria” a colega, com referência às partes íntimas da aluna.
Segundo relatos, mensagens racistas circulavam com normalidade. Um áudio em que uma aluna conta a outra sobre o escândalo, ao qual O GLOBO teve acesso, descreve uma mensagem do “drinha” em que um aluno afirma que iria “mandar um anão preto em cima de um porco pra estuprar” um colega.
Outro agravante são os relatos de violência dentro da escola. Alunos do 3º ano teriam reservado espaços para “uso exclusivo”, como um banheiro no segundo andar. Um aluno do primeiro ano teria usado o local e sido agredido.
Os autores dos abusos que envolvam crimes podem ser responsabilizados pela Justiça, explicam advogados, se uma família registrar um boletim de ocorrência ou o Ministério Público investigar o caso. Os pais ainda podem mover processos cíveis.
— Nessa idade, você tem um nível de responsabilização que são as medidas socioeducativas — diz o advogado Hédio Silva Jr, fundador da JusRacial.
A advogada Verônica Barros, especialista em Direito Digital, lembra que o Brasil tipificou o crime de bullying e cyberbullying em janeiro de 2024. Mas, quando se trata de menores de idade, a lei mais importante é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Isabella Henriques, CEO do Instituto Alana, lembra que o WhatsApp não coíbe comportamentos que colocam adolescentes em risco.
— É o tipo de rede que não tem nenhum filtro de utilização — diz Isabella. — Além disso, tem aquela entrada para o uso da inteligência artificial. Tudo isso deixa as crianças e os adolescentes mais vulneráveis.
Para além de medidas punitivas, especialistas recomendam conversas com as vítimas e também com os autores das agressões para combater o bullying, além do envolvimento dos pais de ambas as partes no problema. Professor da Faculdade de Educação da UFF, Paulo Carrano diz que as suspensões no Santa Cruz podem ser positivas para deixar claro que o ato foi errado, mas sozinhas não são eficazes, pois isolam o autor de aprender sobre o seu erro e corrigi-lo.
— O tempo indeterminado da suspensão faz com que a correção não tenha um efeito duradouro. Já a expulsão que tem que se evitar ao máximo. O ideal é que haja uma mediação e reparação. A expulsão afasta o aluno agressor da chance de melhorar e ele pode ir a outra unidade escolar com um comportamento mais violento — afirma.
Carrano ressalta que os pais, tanto dos agressores quanto das vítimas, devem ter a iniciativa de acompanhar o ocorrido, ouvir os filhos e acompanhar as ações das escolas de combate ao bullying. Trocar o jovem de escola sem resolver o problema pode perpetuá-lo. E recomenda que a escola tenha uma conversa inicial com as vítimas antes de chamar os responsáveis. Essa atitude preserva, por exemplo, um jovem gay vítima de homofobia que ainda não se assumiu para os pais.
Pais e alunos do 2° e do 3° anos foram convocados na sexta-feira para uma reunião com a direção do colégio. Os alunos receberam orientações, mas, segundo uma mãe, não há nenhuma conclusão sobre as medidas que serão tomadas. O clima no colégio, disse outra mãe, é de consternação.
O colégio indicou aos pais que deve incluir na rotina de aprendizagem conceitos que se relacionem às “masculinidades”, porque o grupo era composto por rapazes. O Santa Cruz divulgou nota na qual citou “tristeza e profunda indignação”. De acordo com a nota, o caso fere os “valores estruturais” da instituição de ensino.
Como lidar com bullying
- Suspender é válido? Segundo José Antonio Godolphim Junior, especialista em Salvaguarda e Proteção à Criança, e diretor da Cubo Global Scholl, é válido, mas não basta: o punido precisa receber ações pedagógicas e socioemocionais, como diálogo e reflexões orientadas. A duração deve ser suficiente para que o aluno compreenda a seriedade da infração, sem que isso seja visto como um “prêmio” que o afaste de suas responsabilidades acadêmica. Se houver reincidência e a gravidade da situação se amplie, a expulsão pode ser avaliada.
- Como deve ser a relação entre os pais e a escola? Os pais devem ser envolvidos desde o início, segundo Godolphim. O diálogo é importante para que reconheçam que é no ambiente escolar que erros devem ser trabalhados, preparando o aluno para a vida adulta, onde as consequências podem ser ainda mais severas. Devem ser feitas ações com as famílias ao longo de todo o ano letivo, como rodas de conversa e orientações personalizadas. Contudo, dependendo da gravidade dos fatos e da idade dos envolvidos, o comunicado ao Conselho Tutelar é obrigatório.
- Se a situação persistir, o que a escola deve fazer? Caso os estudantes continuem praticando atos de violência, deve-se adotar medidas institucionais mais rigorosas, que podem incluir a expulsão e o encaminhamento a órgãos da rede de proteção, como o Ministério Público e a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. O bullying é uma infração prevista em lei, e não há margem para a negligência da escola ou das famílias diante da continuidade, diz Godolphim, para quem qualquer medida disciplinar deve sempre ter o objetivo de educar e transformar.