Nascido em agosto de 1949, no Rio de Janeiro, então capital da República, o ex-presidente e ex-senador Fernando Collor de Mello, preso na tarde de sexta-feira (25), aos 75 anos de idade, é um político de projeção nacional que se permitiu ao luxo de, mesmo em campanha presidencial, em 1991, jamais ter posto os pés no território acreano. Se não veio nem mesmo quando era candidato à Presidência da República, agora que está preso — para cumprir uma pena de oito anos e dez meses de encarceramento — é que não vem mesmo. E motivos não lhe faltam, além da prisão, para evitar o Acre em sua agenda: Collor é filho do então senador Arnon Afonso de Melo, que, em 4 de dezembro de 1963, no plenário do Senado, já em Brasília, matou a tiro o senador acreano Kairala José Kairala, natural de Brasileia, interior do Estado.
Embora não haja nenhum tipo de manifestação de descendentes da vítima terem algum desejo de vingança, Collor sempre evitou o Acre para não reabrir velhas feridas que aquele ato, cometido por seu pai, 62 anos depois ainda faz sangrar, já que Arnon Afonso de Melo jamais foi condenado pelo crime. A prisão de seu filho, de alguma forma, foi comemorada pelos descendentes Kairala na ainda acanhada Brasileia como um sinal de justiça, embora tardia.
Descendente de libaneses, Kairala era um pequeno comerciante muito respeitado por sua comunidade, razão pela qual, ao concorrer ao Senado da República pelo Acre, em 1962, o ex-governador territorial José Guiomard Santos, responsável por elevar o território à condição de Estado, que também disputava o governo com o candidato do PTB José Augusto de Araújo (na época, a legislação eleitoral permitia a disputa a cargos distintos por um mesmo candidato), convidou Kairala José Kairala para ser seu primeiro suplente. Convite aceito, com a derrota para o governo para José Augusto, Guiomard é eleito senador e cumpre a promessa feita no ato do convite de que o suplente assumiria o mandato por um período de três meses. Inocente, Kairala não sabia que, ao assumir o mandato, estava assinando, ele próprio, sua sentença de morte.
Passados três meses, no último dia como senador, o suplente então resolve reunir os familiares para uma série de fotografias ali no plenário, para guardar como lembrança de sua passagem pelo Senado. Família reunida no plenário, sorrisos fartos, a alegria foi interrompida com estampidos de tiros de revólver calibre 38.

Senador José Kairala, do Acre, vítima do crime cometido pelo pai de Collor no plenário/Foto: Arquivo histórico
Era o ápice de meses de tensão e troca de ameaças entre os senadores Arnon de Melo e Silvestre Péricles, adversários figadais na política em Alagoas. Péricles, uma espécie de coronel do sertão nordestino, rivalizava com Arnon de Melo pelo controle político de Alagoas. Enquanto o coronel nordestino fazia o tipo de quem resolve tudo na bala, Arnon de Melo, jornalista e um intelectual refinado, amigo e sócio de Roberto Marinho — que estava fundando o que seria a maior rede de televisão do País, a Globo —, ameaçado, também passou a andar armado no Congresso. Ao saber disso, Péricles mandou um recado: se, em seus discursos, Arnon de Melo tocasse no nome de Silvestre Péricles, levaria tiros na boca. Não deu outra.
Sem aceitar desaforos
“Senhor presidente, com a permissão de Vossa Excelência, falarei de frente para o senador Silvestre Péricles de Góes Monteiro, que me ameaçou de morte”, disse Arnon de Melo ao iniciar seu discurso na sessão daquele dia fatídico.
Dias antes, sentindo o clima de ameaças no ar, o então presidente do Senado, o paulista Auro de Moura Andrade, já dava evidências da preocupação que tinha com o clima de tensão que ali vinha se instalando. A fala de Arnon, diretamente dirigida ao seu inimigo político, foi o estopim para que se iniciasse um faroeste caboclo no Senado.
Silvestre não aceitou o desaforo e atacou verbalmente Arnon, que, por sua vez, sacou o revólver que carregava consigo — um Smith & Wesson 38, ou três-oitão, na linguagem popular, de cano longo e cabo de madrepérola — e disparou várias vezes. Nenhum dos tiros atingiu Péricles, que também estava armado, mas que “jogou-se no chão e rastejou entre as fileiras de poltronas com seu revólver na mão”, como relata reportagem do Jornal do Brasil, antes de ser amparado e desarmado pelo colega paraibano João Agripino.
Dois projéteis, no entanto, acertaram José Kairala, senador do PSD do Acre, que, junto com Agripino, procurava conter os “excelentíssimos senhores” de armas em punho. Kairala tinha 39 anos e foi baleado na frente do filho pequeno, da esposa e da mãe, que haviam ido prestigiá-lo no último dia de tão nobre trabalho. O disparo acertou seu abdômen. Embora tenha sido socorrido rapidamente e levado ao Hospital Distrital de Brasília, ele faleceu no mesmo dia, pouco depois das oito horas da noite.

Momento em que o revólver de Arnon de Melo dispara e atinge o senador Kairala, que estava sentado ao fundo e expressa no rosto a dor pelo ferimento/Foto: Arquivo histórico
Pai de Collor é preso em flagrante
Nascido em setembro de 1911 no estado pelo qual foi eleito, Arnon de Mello tornou-se jornalista já quando morava em terras fluminenses, para onde se mudou aos 19 anos. Pouco depois, formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Sua carreira política começou em 1945, com o fim do Estado Novo, quando entrou para a UDN, partido pelo qual foi eleito suplente de deputado federal e, em 1950, governador de Alagoas, cargo que ocupou ao longo de cinco anos. Depois, em 1962, um ano antes de cometer o assassinato, foi eleito senador pela mesma unidade federativa.

Arnon de Melo (PDV-AL) presta depoimento na 1ª Vara Criminal de Brasília Polícia durante o inquérito da morte do senador Kairala/Foto: Arquivo histórico
Sua trajetória, evidentemente, não apagou seu crime, mas ajudou a contorná-lo. Pressionados pela população, logo os demais parlamentares aprovaram, por 44 votos a 4, a prisão dos dois colegas pistoleiros. Apesar de serem presos em flagrante, assim como ocorre hoje, os outros senadores precisavam dar o aval para que Arnon e Silvestre fossem encarcerados — mesmo com o segundo garantindo ser uma “vítima desprevenida”, conforme registra o Jornal do Brasil à época. No entanto, não demorou para que ambos estivessem soltos novamente. Antes do meio do ano de 1964, tanto Arnon quanto Péricles foram declarados inocentes pelo Tribunal do Júri de Brasília.
Ainda que Arnon tenha desmentido, histórias contadas e recontadas na época garantem que, enquanto permaneceu na cadeia, o senador mantinha o seu Smith & Wesson 38 sempre consigo, o que intimidava os policiais responsáveis por garantir a segurança do presídio — que se recusavam a se aproximar da cela do parlamentar detido.
Na época, curioso também foi um dos editoriais do jornal O Globo a respeito da prisão de Arnon, então amigo e sócio de Roberto Marinho, proprietário do periódico. “A democracia, apesar de ser o melhor dos regimes políticos, dá margem, quando o eleitorado se deixa enganar ou não é bastante esclarecido, a que o povo de um só estado — como é o caso — coloque na mesma casa legislativa um primário violento, como o senhor Silvestre Péricles, e um intelectual, como o senhor Arnon de Mello, reunindo-os no mesmo triste episódio, embora sejam eles tão diferentes pelo temperamento, pela cultura e pela educação”, publicou o jornal, deixando claro o lado que apoiava, ao usar adjetivos como “primário violento” para Péricles e “intelectual” para Arnon, e fazendo questão de também separá-los pelo “temperamento”, pela “cultura” e pela “educação”, ainda que fosse o incensado o responsável direto pelo crime.
Crime, aliás, que voltou a ser notícia em Brasília em 2009, pelas lembranças do senador Pedro Simon, que, após uma discórdia com Fernando Collor de Mello, afirmou: “É incrível! Me veio a imagem do pai dele, que atirou no senador Kairala e o matou. O pai do Collor errou o tiro, mas ontem [parecia] que ele estava na minha frente, na minha reta! Foi assustador, saía fogo dos olhos do senador Fernando Collor (…). E eu não falei nada demais dele, quando o vi entrar correndo, completamente transtornado.”
A cela de Fernando Collor
Depois de deixar a prisão, Arnon foi nomeado novamente, em 1970, para o mesmo cargo que ocupara antes. E, quando faleceu, em 1983, ainda representava o estado de Alagoas no Senado. Seu filho acabara de renunciar ao cargo de prefeito indicado de Maceió, de 1979 a 1982, para ser eleito deputado federal pelo PDS e iniciar a carreira política que o levaria à Presidência da República, em 1991, quando produziu o chamado Plano Cruzado, que confiscou os depósitos bancários dos brasileiros.
Preso em Alagoas, Fernando Collor de Mello está numa cela especial destinada a presos “famosos” do estado de Alagoas. O espaço, no Presídio Baldomero Cavalcanti de Oliveira, em Maceió, tem seis metros quadrados — três metros de comprimento por dois metros de largura. Collor vai ficar sozinho no espaço e terá à disposição dele uma cama de alvenaria, um vaso sanitário, um chuveiro e uma pia.
As informações são de pessoas que atuam no dia a dia do presídio. Os presos especiais, como Collor, também podem levar mobílias de suas casas para as celas, como escrivaninhas e até mesmo frigobares. Se o preso quiser mais privacidade, ele também pode colocar cortinas. Para isso, porém, é preciso ter permissão da direção do local.
A cela especial de Collor fica em uma parte do presídio chamada “Módulo Especial” e conhecida internamente como “Vila”, pelo fato de as celas ficarem entre um pátio. Longe dos espaços onde ficam os presos comuns, a “Vila” tem 12 celas privativas, sendo seis de cada lado. Metade delas tem fechamento com grades; a outra, com portas de madeira.
Ao determinar a prisão de Collor, na noite da última quinta-feira (24), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, determinou que o ex-presidente deveria ter um espaço especial por ter governado o país entre 1990 e 1992.