PMs tentaram matar major em curso e forjar causa por Covid, diz MPGO

PMs tentaram matar major em curso e forjar causa por Covid, diz MPGO Oficial ficou em estado gravíssimo após tortura em curso do Bope. Acusados esconderam situação da família e tentaram forjar morte por Covid

Policiais militares torturaram e tentaram matar um major durante um curso de Batalhão de Operações Especiais (Bope) em Goiás. Por fim, eles ainda buscaram forjar a causa de uma possível morte como se fosse por Covid-19, para esconder o crime. É o que afirmam o Ministério Público de Goiás (MPGO) e a Corregedoria da PMGO em investigação sigilosa à qual o Metrópoles teve acesso.

No mês passado, o Ministério Público ofereceu denúncia contra sete PMs pelos crimes de tortura e tentativa de homicídio, após investigação da Corregedoria que indiciou os militares. Os crimes aconteceram em outubro de 2021, mas foram mantidos em segredo durante mais de dois anos, até agora. A denúncia ainda não foi acatada pelo Judiciário.

De acordo com as investigações, o major João (nome fictício) foi torturado com varadas, pedaços de madeira e açoites de corda durante três dias seguidos no 12º Curso de Operações Especiais do Bope, na Base Aérea de Anápolis.

Reprodução/ TJGO

Toda a tortura aconteceu durante um evento do curso batizado de “Momento Pedagógico”, que de pedagógico não tinha nada. O major foi torturado de maneira tão brutal que desmaiou e entrou em coma, ficando vários dias intubado em unidade de terapia intensiva (UTI).

Para piorar a situação, segundo o MP, os policiais esconderam o caso da família do major e tentaram fingir que o oficial estava internado com Covid-19 e 40% do pulmão comprometido. Isso foi possível, porque a vítima foi inicialmente transferida para um hospital de confiança dos militares e era monitorada por um coronel médico, integrante do curso do Bope.

“Certos de que o estado de saúde do ofendido havia atingido níveis críticos e que, por certo, ele não se recuperaria, preferiram aguardar até o seu esperado falecimento, quando poderiam entregar o seu corpo em um caixão lacrado à família, alegando a contaminação pela Covid e impedindo que os fatos viessem à tona e fossem investigados”, escreveu o Ministério Público na denúncia, assinada por três diferentes promotores como medida de segurança.

Reprodução/ TJGO

Card com imagens fortes

Caveira gravemente ferido

O curso de operações especiais da PM de Goiás é destinado aos policiais que querem servir no Bope, unidade destinada ao atendimento de ocorrências de alta complexidade, como as que envolvem reféns. O modelo de treinamento ficou muito popular após o filme Tropa de Elite, de 2007. Os formados em tal curso são apelidados de “caveiras”.

João, o major torturado até quase morrer, tinha o sonho de concluir esse curso. Ele vinha se preparando há anos para tal empreitada e, segundo a investigação, apresentava mais resistência ao “treinamento” que os colegas de patentes mais baixas. A persistência e a alta patente teriam, inclusive, motivado os instrutores em aumentar o grau de tortura contra ele.

O major levou tanta pancada que ficou em estado gravíssimo (foto em destaque). Em um primeiro momento, ele chegou ao Hospital de Urgências de Anápolis (Huana) em coma profundo, com lesão neurológica grave, sem responder a nenhum estímulo e com rabdomiólise, que é uma ruptura do tecido muscular que resulta na liberação de uma proteína no sangue, que, por sua vez, danifica os rins.

Mesmo tão grave, os policiais decidiram transferir o major para o Hospital Santa Mônica, na cidade de Aparecida de Goiânia, a 1 hora de distância, onde ele foi assistido pelo médico que supervisionava o curso do Bope, o coronel David de Araújo Almeida Filho. Tudo isso foi feito sem informar a família do oficial ferido.

Falsa Covid-19

O major passou mal no curso do Bope e foi intubado na tarde de 16 de outubro, um sábado, mas os policiais militares responsáveis pelo curso não informaram a família dele, mesmo tendo o contato telefônico. A esposa do paciente, que é promotora de Justiça, só ficou sabendo que o marido estava internado na manhã do dia seguinte, um domingo, depois de um amigo pessoal do oficial avisar que ficou sabendo da suposta internação por Covid-19.

Quando a esposa chegou ao hospital, foi informada que só poderia saber sobre o marido pelo médico coronel David. O médico militar chegou ao hospital de uniforme militar completo e arma, e alegou que o major estava com Covid-19 e 40% do pulmão comprometido. A tomografia comprovando esse comprometimento do pulmão nunca foi apresentada, segundo a investigação. Além disso, uma tomografia feita horas antes no Huana não encontrou sinais de Covid.

Mais tarde, a documentação médica também demonstrou que o major necessitava de hemodiálise, por causa dos rins comprometidos, mas isso não estava acontecendo na internação oferecida pelo médico coronel. A esposa ainda percebeu que, apesar da gravidade, o marido não estava sendo assistido por nenhum médico intensivista e estava sozinho em um cômodo do hospital. O paciente foi apresentado em uma maca com o corpo coberto por uma manta até o pescoço.

Ela então decidiu transferir o major para um hospital de confiança, mas o médico coronel teria tentado colocar vários obstáculos, como a condição da Covid, falta de documentação e outras questões burocráticas. Após muita insistência, ela conseguiu levar o marido para o Hospital Anis Rassi, em Goiânia, onde foram constatadas lesões corporais gravíssimas e exame negativo para coronavírus.

Vida pós-tortura

O major João recebeu alta no dia 27 de outubro daquele ano, mas acabou tendo que ser internado novamente poucos dias depois porque contraiu uma infecção pelo cateter do tempo de internação. Ele conseguiu se recuperar consideravelmente, após muita fisioterapia, mas ainda tem uma perda parcial de movimentos de um lado do corpo e 30% dos rins comprometidos.

“Emocionalmente, a vítima nunca mais foi a mesma, especialmente devido ao sentimento de impunidade em relação aos responsáveis pelo ato e por ter sido ‘desprezado’ por seus companheiros de farda”, escreveu o Ministério Público na denúncia.

Mais tarde, o major foi promovido a tenente-coronel e a PM aceitou que ele recebesse o diploma do curso do Bope. Todos os sete acusados continuam trabalhando normalmente e, mesmo com o indiciamento da Corregedoria, apenas três foram punidos com 12 horas de prestação de serviço.

Tentativa de ocultar

Mesmo depois da mudança de hospital, os policiais envolvidos nos crimes tentaram destruir provas, segundo a investigação da Corregedoria e do MP. De acordo com o Ministério Público, um informante da polícia, a mando do tenente-coronel Marcelo Duarte Veloso, tentou pegar o prontuário médico do major no primeiro hospital em que ele foi internado, em Anápolis, alegando que representava a família.

Por acaso, o informante foi impedido pela esposa do oficial, que estava na unidade de saúde para receber o documento no mesmo momento. Já um outro militar, que não está entre os denunciados pelo MP, teria ido até o hospital Anis Rassi e tentado acesso ao quarto em que a vítima estava.

“Na ocasião, a esposa da vítima foi informada e se dirigiu até a recepção para conversar com o policial militar, que se recusou a identificar-se, afirmando apenas que lá estaria por determinação do Comando”, diz trecho da denúncia do Ministério Público. Segundo a investigação, esse militar na verdade era um motorista do tenente-coronel Joneval, um dos denunciados pelos crimes.

Crimes e pedidos

O Ministério Público apresentou denúncia por tentativa de homicídio e tortura por omissão contra os seguintes policiais: coronel Joneval Gomes de Carvalho Júnior, tenente-coronel Marcelo Duarte Veloso e coronel David de Araújo Almeida Filho. Já no caso do capitão Jonatan Magalhães Missel, coordenador do curso do Bope, o MP apresentou denúncia por torturar diretamente o major e tentativa de homicídio. Em relação ao cabo Leonardo de Oliveira Cerqueira e os sargentos Erivelton Pereira da Mata e Rogério Victor Pinto, o Ministério Público apresentou denúncia por tortura.

O MP pede que todos os denunciados sejam afastados de suas funções e que seus armamentos sejam recolhidos.

Advogado que representa o tenente-coronel Veloso, Caio Alcântara informou ao Metrópoles que os autos são sigilosos. “Portanto estamos legalmente impedidos de fazer qualquer comentário a respeito”, escreveu. A reportagem tentou contato com os outros indiciados, mas não obteve retorno até a publicação da matéria. O espaço segue aberto.

Em nota, a PM de Goiás informou que o inquérito policial militar sobre o caso foi concluído e devidamente encaminhado para a Justiça Militar. “A Polícia Militar reafirma seu compromisso com o cumprimento da lei e a colaboração com as autoridades judiciais”, escreveu no documento.

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