Um menino oferece Freegells, um drops de menta, no posto de combustível. “Tio, me ajuda aí. Preciso juntar dinheiro”. A tristeza inescapável no olhar o denuncia como garoto sofredor, ainda que ele esconda a dor no coração como instinto para manter-se forte. Para dizer ao mundo que pode, sim, ser feliz sozinho, sem irmãos, sem pai nem mãe.
André, como será chamado, foi atropelado duas vezes. A primeira quando saiu de casa cansado de ver o pai espancar a mãe quando chegava embriagado. A segunda, quando se cadastrou no Ifood com o nome de um morador da Baixada da Sobral que quis ajudá-lo. No caminho da entrega, encontrou uma picape. O motorista não parou para ajudá-lo. A bicicleta sofreu danos na coroa, teve o garfo empenado e arranhões na pintura. André safou-se ileso. Somente alguns arranhões pelas pernas e braços.
“Tio, me ajuda. Preciso juntar um dinheiro”. A frase, repetida na janela de cada motorista que chega ao posto de combustível tem um motivo: arrecadar R$ 157 até terça-feira para resgatar a magrela.
“Hoje é domingo e se eu não fizer esse dinheiro até lá, a mulher da oficina vai tomar a minha bike. Me disse que já pegou as peças no fiado. Então, tô pedindo aqui pra ter minha bicicleta de volta e recomeçar no Ifood”.
André só tem 15 anos. Almoça e janta filando a bóia dos frentistas. Antes do acidente, pagava R$ 400 por mês no quarteirão ao lado do posto. Sendo menor de idade, não explicou como conseguiu fechar contrato com o proprietário do quarto. Lá, ele só tem um colchão velho. Naquele momento não fazia ideia de como honraria o aluguel no final de maio.
Um dia chegou em casa e viu a mãe sendo agredida a socos pelo pai. Mais uma vez revoltou-se. “Naquele momento, eu disse que iria embora daquela vida”. A vontade de viver sossegadamente ganhou força quando o pai o obrigou a trazer dinheiro para casa. Foi vender bombons. Não conseguia apurar tudo. Em paga da sua impossibilidade, recebia chutes e pancadas na cabeça. “Então saí para nunca mais voltar”, diz o menino, que tem problema de dicção, talvez pelos traumas de anos.
A história acima é real. O garoto foi conhecido, semana passada, pela reportagem do ContilNet, que levou o caso ao conhecimento do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) e alertou também a equipe do Serviço de Abordagem Social, da Prefeitura de Rio Branco.
Neste sábado (18), Dia Nacional da Luta Antimanicomial, entenda por que o menino André, que abre esta reportagem corre sérios riscos de tornar-se mais um indivíduo a adoecer mentalmente e se perder em meio a uma multidão de pelo menos 500 indivíduos, que hoje estão nas ruas de Rio Branco, a maioria sofrendo de distúrbios mentais graves por causa da drogadição e do alcoolismo, segundo levantamento do Centro de Referência para a População em Situação de Rua, o Centro POP.
Explica a psicóloga Bruna Oliveira, coordenadora administrativa do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial, o Natera, do MPAC, que desde 2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica no Brasil é um instrumento importante para a garantia de direitos a portadores de transtornos mentais. No entanto, os serviços públicos não acompanham mais a demanda.
“O pós-pandemia causou um aumento da insanidade. Todo mundo passou a adoecer por causa do desemprego, do isolamento social, da agressão no lar, da rejeição. Uma realidade que até então ninguém sabia como se processaria. a questão social da miséria, da fome, da pobreza com violência doméstica só ganhou proporções ainda mais alarmantes do que já acontecia antes da pandemia de covid-19”, acrescenta a especialista do Natera.
A Lei nº 10.216, a Lei da Reforma Psiquiátrica, combate o estigma, luta contra o tratamento desumano e determina dignidade a essas pessoas por meio de serviços comunitários e não mais em manicômios. A questão na prática, no entanto, é bem mais complexa. Falta espaço para tanta gente, o que impede que unidades como o Hospital de Sanidade Mental do Acre, o Hosmac, sejam desativadas de uma vez por todas.
No Hosmac, 16 indivíduos sem famílias estão internados há mais de 20 anos
Dezesseis pacientes do Hosmac vivem no hospital há pelo menos duas décadas. A informação consta em relatório do Natera e serve para ilustrar sobre a necessidade do serviço residencial terapêutico no Acre. Basicamente, ele é uma casa de apoio às pessoas com transtornos psiquiátricos, que são atendidas por uma equipe multidisciplinar, eliminando o estigma da internação.
“No Acre, não temos ainda esse serviço, embora tenhamos uma luz no fim do túnel com a adequação, em breve, de uma casa do Centro de Atenção Psicossocial, o Caps, no conjunto Morada do Sol, para oito pessoas”, diz a coordenadora administrativa do Natera, do MPAC. Não se sabe, no entanto, se algumas dessas vagas poderiam ser preenchidas por parte dos 16 internados no Hosmac.
Há alguns meses, o MPAC assinou termo de ajustamento de conduta com a Prefeitura de Rio Branco para que o CAPS Samaúma implantasse a primeira residência. E assim, está sendo feito, porém, ela já nasce quase lotada, com vagas para 8 pessoas apenas, no conjunto Morada do Sol.
“Isso porque não pode superlotar para evitar que as pessoas não sejam atendidas adequadamente pelos profissionais que seriam reduzidos e não dariam conta para mais pessoas”. No sistema prisional há também detentos que saem com transtorno mental, mas nunca mais se recuperam porque precisam de uma dessas residências, mas não as encontram.
Uma vez no ano, o Ministério Público realiza inspeções em várias unidades da saúde mental, incluindo a ala do Pronto-Socorro de Rio Branco e o Hosmac. “O que constatamos é que há muita gente sendo acompanhada pelos profissionais do Hosmac, mas de uma forma em que só levam e trocam as receitas para os medicamentos, sem mais nada consistente, como uma consulta de qualidade”, pontua Bruna Oliveira.
Número de pessoas na rua quase triplicou em 2024, em relação a 2012
No Brasil, não há um levantamento oficial sobre o número de pessoas em situação de rua propensas a problemas mentais por causa das drogas e do álcool. Recentemente, uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, determinou que o governo federal realizasse um censo sobre esses indivíduos. O processo está em andamento, mas sem prazo definido.
Em Rio Branco, segundo o Centro POP, estima-se que entre 450 a 500 pessoas estejam vivendo nas ruas em 2024. Em 2012, elas eram 200. A instituição percebeu ainda que houve um aumento substancial no número de idosos e mulheres nesta condição.
O Centro POP trabalha com um cadastro para pessoas que abusam de álcool e drogas em condição de rua e oferece almoço gratuito, todos os dias, no centro de Rio Branco. O centro oferece acolhimento e documentação, como uma espécie de ‘guarda-chuva’ desta população.
“Hoje, as ruas de Rio Branco estão cheias de pessoas com histórias fantásticas. São poetas, doutores com formação na Inglaterra, servidores públicos federais, estaduais, cada um com a sua história de vida, que em algum dia se deteriorou, como a do menino do posto [que abre esta reportagem], que se não for auxiliado, pode de algum modo, começar a ter problemas, vindo a cair nas drogas, nas ruas”, acrescenta ainda a especialista do Natera.
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