Conheça o ‘sapateiro de Cochabamba’, boliviano que vive há quase 30 anos no Acre

Ronny Torres Mariscal encontrou no Brasil a razão para viver consertando calçados, numa oficina que por duas vezes foi inundada severamente

O rosto do filho e as montanhas dos altiplanos bolivianos são as lembranças mais agradáveis na memória do boliviano Ronny Torres Mariscal, 60 anos, 28 deles vivendo no Brasil, na cidade de Brasileia, distante 240 quilômetros de Rio Branco, fronteira com a cidade boliviana de Cobija. As suas lembranças de infância sofrida remetem a visões das cordilheiras em Cochabamba. Mas quanto às recordações do filho, bem, essa é a parte mais dolorida da história que se segue.

Ronny Torres Mariscal, sapateiro boliviano que encontrou no Brasil uma nova história de vida/Foto: Arquivo pessoal

Mariscal é sapateiro. Aprendeu o ofício remendando as botas dos trabalhadores gastas com o atrito das pedras nas minas de estanho fundada por Patiño, o Barão do Estanho, um cochabambino como ele e empreendedor do início do século, que começou do zero e enriqueceu na mineração local.

Em 1996, Mariscal deixou a segunda maior cidade da Bolívia para viver na planície amazônica. Dominou o portugês, casou-se pela primeira vez com uma mulher de Cobija e teve um filho. Duas décadas e um pouco mais, perdeu o garoto. Entre um reparo de sapato e outro, brincava com o moleque e o ensinava a remendar os sapatos.

Num dia ensolarado, o menino pegou uma mochila e entrou no ônibus para nunca mais voltar com vida. Ele partiu para São Paulo. A rota é feita todos os anos por milhares de bolivianos ávidos pelo sonho da prosperidade na maior cidade do Brasil. E, apesar de muitos caírem na semiescravidão da indústria da confecção de roupas, alguns patrícios não se importam quando o assunto é emprego e renda, já que seu país é tão perverso quanto este aqui, em desigualdade social.

O sorriso de Ronny Mariscal esconde as histórias marcadas pela saudade e perseverança/Foto: Arquivo pessoal

Na construção civil, batia estaca. Em 2016, foi executado com um tiro na cabeça, aos 21 anos, numa rua da periferia da grande São Paulo. As circunstâncias em que o rebento foi morto, Mariscal nunca quis saber. O garoto, cujo nome ele guarda só para si, engrossou a triste realidade das 1.591 pessoas mortas em 2016, em São Paulo, segundo levantamento do Atlas da Violência 2024. O inquérito policial foi arquivado. O corpo, trasladado para o Acre e sepultado em Cobija.

Duas grandes inundações em Brasileia, uma em 2015 e outra este ano, deixaram a Sapataria Brasil devastada. Mas não o suficiente para matar a ânsia de Ronny Mariscal de ser feliz. Encontrou na filha do segundo casamento com uma brasileira o alento merecido.

Em 1996, Mariscal deixou a segunda maior cidade da Bolívia para viver na planície amazônica/Foto: Arquivo pessoal

– Minha princesa vem sempre me visitar. Ela já está adulta e é a inspiração que tenho pra continuar – diz.

– O meu filho, eu não terei mais por aqui. Mas um dia vou até ele. Disso, tenho certeza – se resigna.

E o sorriso logo volta, moldando o olhar triste. Ao final da manhã de sábado, fecha a oficina, senta na Suzuki 125, ano 1985. Atravessa o igarapé Bahia e na Esquina de La Abuela, em Cobija, senta para conversar com os amigos. Ali, descansa o coração enquanto toma um suco de pêssego.

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