Felipe* ainda não decidiu se vai contar ou não para a esposa sobre seu problema com as bets, as plataformas de aposta esportiva.
Ou melhor, ex-esposa: embora ainda conversem e Felipe acredite que possam reatar, ela o deixou há 6 meses, depois de um relacionamento de 12 anos, junto com o filho de 10 anos do casal.
O problema, segundo Felipe contou à BBC News Brasil, não foram apenas os cerca de 40 mil reais deixados nas apostas, que ele perdeu sem dar explicações à companheira. Mas também seu comportamento ausente dentro de casa:
“A mente de um jogador fica obscura. Eu não conseguia mais desempenhar meu papel em casa, meu papel como pai. Não brincava mais com meu filho e parei de conversar direito com ela.”
Desconfiando que as dívidas do marido seriam por um suposto relacionamento com outra mulher, sua esposa decidiu se separar.
A história de Felipe ressoa nos relatos da advogada Audrey Cardoso Scattolin, da cidade de Americana, no interior de São Paulo.
Ela diz que, em 2022 e 2023, os divórcios motivados por vício em bets ou em jogos de azar, como o “jogo do tigrinho”, representam cerca de 80% dos casos de seu escritório, segundo levantamento interno.
Para uma das clientes de Scattolin, a gota d’água para a decisão do divórcio foi ver o ex-marido apresentando o jogo do tigrinho para o filho de 12 anos.
A advogada também acumula histórias de clientes cujos cônjuges perderam centenas de milhares de reais, além de bens como carro e até a casa da família. Vários se envolveram com agiotas para pagar as dívidas e para continuar jogando.
Desde a pandemia, as bets e os jogos de azar ficaram cada vez mais presentes no cotidiano dos brasileiros. São patrocinadores de times e campeonatos de futebol, estão nas campanhas de influenciadores, comerciais na televisão, anúncios em apps, banners no transporte público e várias outras aparições.
Menos visíveis, mas não raros, são os relatos de pessoas que se arrependeram de experimentar essas plataformas.
Uma busca rápida em redes sociais como TikTok ou YouTube leva a vídeos de usuários que tiveram perdas significativas e tentam lidar com o vício, em posts seguidos de dezenas de comentários com histórias semelhantes.
Entre os relatos, chamam atenção os que falam das consequências do vício nos relacionamentos amorosos:
“Meu esposo está extremamente viciado e tá difícil para mim conviver com ele. Só ontem foi 3 mil para o ralo. Há 3 anos ele não consegue parar. Tô quase terminando com ele. Já fiz de tudo, conversei, ameacei terminar, ofereci tratamento. Mas ele não muda.”
“Meu bem, o meu [marido] me deixou por muito menos que isso. O jogo me destruiu, hoje tô pagando por isso.”
“Perdi 1400 do meu marido, estou criando coragem pra contar pra ele hoje. Mas ele não vai me perdoar.”
Consequências imprevisíveis
É difícil quantificar com precisão o impacto das novas ocorrências do jogo patológico, como é chamado o vício em jogos, nos casamentos.
Isso acontece porque as motivações dos divórcios não são oficialmente registradas no Brasil, explica a advogada Patrícia Gorisch, doutora em direito e diretora do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família).
Além disso, a possibilidade de fazer apostas por meio do próprio celular, sem ter que se deslocar a um estabelecimento físico como um cassino, é algo relativamente novo no país.
“Há quanto tempo as bets estão no Brasil de uma forma mais intensificada? Dois, três anos. Quais serão, a médio ou a longo prazo, as consequências disso para as relações familiares, pessoais e interpessoais? Não sabemos”, diz a advogada.
Raquel* é uma das pessoas que já vive essas consequências. Ela estava grávida do segundo filho quando descobriu que o marido tinha um problema com apostas.
“Ele me pediu ajuda, falou que não conseguia mais parar sozinho esse vício de jogo. A gente tentou procurar ajuda várias vezes, mas não resolveu. E ele foi se afundando cada vez mais”, conta.
Com o tempo, as perdas do marido se acumularam: 40 mil reais furtados da mãe; 50 mil reais da venda do carro; 20 mil reais em um empréstimo feito em nome do pai de Raquel; e até 40 mil reais do valor de entrada pela venda da casa — uma transação que ela agora tenta reverter na Justiça.
“Ele arranca e não pensa em ninguém, não pensa em filho, não pensa em nada”, diz Raquel.
“Depois ele começou a se envolver com bebida, perdia dinheiro na aposta e chegava em casa bêbado, e eu não aguentei mais. Pedi a separação quando ainda estava grávida da nossa filha.”
Apesar das perdas financeiras e do problema com álcool do marido, ela se questiona se não deveria ter tido mais paciência e procurado ajuda “nos lugares certos”.
“Eu acho que faltou um pouco de sabedoria da minha parte. Talvez se tivesse lutado mais, não teria perdido minha família.”
Por que são tão viciantes?
As bets são plataformas de aposta de cota fixa, em que o usuário faz uma aposta sobre diferentes situações de um evento esportivo a partir de uma taxa específica de ganho, chamada de “odd”.
Essas situações podem ser o placar final da partida; uma ação que um jogador específico vai realizar, como um escanteio ou falta; e até o momento do jogo em que essas coisas vão acontecer.
Cada detalhe da partida vira uma possibilidade de lucro — ou de perda. Quanto mais rara for a situação, maior a taxa de ganho — a odd — do usuário.
Especialistas apontam que parte do que tornou as bets tão populares no Brasil foi a exploração de uma paixão nacional, o futebol.
“Futebol era minha vida, eu amava futebol. Agora dei uma afastada. Eu não consigo ver uma partida sem querer apostar. Assistindo eu vou querer entrar na casa de aposta online, querer ver a cotação e isso pra mim é o pior, é o que faz com que eu tenha recaídas”, conta Felipe.
Outro aspecto central é a ilusão de ganho de dinheiro fácil. Essa promessa atrai especialmente usuários de baixa renda, que passam a ver no jogo uma possibilidade de mudança de sua situação financeira.
Isso também é algo que leva pessoas para os jogos de azar online, como o “tigrinho”. Eles seguem a mesma lógica das máquinas de caça-níquel, geralmente associadas a cassinos: o jogador paga para tentar alinhar símbolos iguais ao girar uma roleta aleatória — ou, nesse caso, apertar um botão no celular.
Um artigo do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família) aponta que a dependência nesses jogos “está associada a um ciclo vicioso de excitação e alívio, seguido por culpa e ansiedade, que leva o indivíduo a retornar ao jogo para aliviar esses sentimentos negativos”.
“Nesse contexto, o reforço intermitente – a recompensa aleatória que os jogos de azar oferecem – desempenha um papel crucial, pois alimenta a expectativa e a excitação, tornando o comportamento mais difícil de controlar.“
O artigo, escrito pelas pesquisadoras e advogadas especialistas Patrícia Gorisch e Paula Carpes Victório, acrescenta que “indivíduos que vivem em ambientes onde o jogo é socialmente aceito ou incentivado têm maior probabilidade de desenvolver problemas relacionados ao jogo”.
Demanda camuflada na clínica
O alcoolismo é só um dos exemplos de um processo comum: a associação do vício em jogos com outros prejuízos para a saúde do indivíduo e da família.
Vinicius de Souza Campos, assistente social e terapeuta familiar sistêmico, estima que, nos últimos dois anos, mais da metade dos seus atendimentos em clínicas privadas e no setor público envolveram o vício em jogos.
E, em muitos casos, o problema do jogo fica camuflado em outras demandas. “É comum que as famílias cheguem já em um processo de separação, em que um dos membros da família já está vivendo uma violência patrimonial ou até uma violência física em decorrência desse vício.”
Há casos em que o jogo patológico pode ficar ainda mais escondido, como quando uma criança apresenta um comportamento agitado ou violento e, ao investigar mais profundamente, descobre-se que ela está inserida numa família em que um dos cuidadores está viciado em jogos.
Ou seja: essa família pode se encontrar em um contexto social mais complexo, com essa criança possivelmente tendo perdido o acesso à escola que frequentava e rompido vínculos com amigos antigos ou com o próprio pai ou mãe.
“Muitas vezes as famílias têm pouco acesso à informação, o que atrapalha a compreensão de que o vício em jogos é um problema por si só”, diz Campos.
Para ele, o cenário atual se trata de um problema de saúde e de segurança pública, e há uma ausência de campanhas do governo sobre o assunto que sejam “voltadas para as famílias, com uma linguagem simples, acessível e didática”.
Na terça-feira (17/9), o ministro da Fazenda Fernando Haddad descreveu o cenário como uma “pandemia instalada no país que nós temos que começar a enfrentar, que é essa questão da dependência psicológica dos jogos”, segundo noticiou o jornal Folha de S.Paulo.
Haddad disse que o processo de regulamentação das casas de aposta, que está em curso no governo federal, também visa dar amparo às famílias, e que “qualquer forma de dependência tem que ser combatida pelo Estado”.
Ouvir e acolher
A técnica de enfermagem carioca Talita Lima precisou subverter uma lógica bem estabelecida dentro da casa dela quando percebeu que seu marido, que trabalha como segurança, estava viciado em apostas.
“Hoje em dia eu tenho total controle da nossa vida financeira, o que antes era dele. Em um lar cristão, na minha visão, o homem é o provedor e a mulher é a zeladora. Mas eu passei a ser a provedora e a zeladora”, ela conta à BBC News Brasil.
“Até que eu me sinta segura e ele se sinta seguro em relação a isso, eu prefiro que permaneça assim.”
Talita estava desempregada quando notou um comportamento diferente do esposo. As contas começaram a atrasar, ele ficou mais inquieto, e eventualmente ela o viu jogando no celular.
“No início eu achei aquilo meio que interessante. Eu pensei nossa, é um aplicativo que te dá um dinheiro fácil, interessante.” A ideia inicial do marido, ela diz, é que as apostas ajudariam o orçamento da família, em um período em que Talita não tinha renda.
Ela só entendeu a dimensão do vício dele quando foi recolocada no mercado e voltou a se envolver com as contas de casa, mesma época em que descobriu sua gravidez.
“Ele estava afundado em dívidas, muitas, muitas dívidas. Eu fiquei desesperada. Eu não tiro a razão de homem ou mulher que coloca um fim nisso, que não aceita essa situação, né? É desesperador.”
“Porém eu conversei com meu esposo, eu pedi pra ele abrir o jogo pra mim. Pedi pra ele fazer um voto, que envolvia o filho dele, nosso casamento, e Deus.” Depois de momentos de altos e baixos, o marido de Talita apagou os aplicativos de aposta e parou de jogar.
Vinicius de Souza Campos, terapeuta familiar, diz que o diálogo dentro da família é essencial para conseguir lidar com o vício. Só assim “a família vai ter uma clareza maior dos danos e poder buscar uma estratégia de enfrentamento da questão”.
“A família precisa ser vista como um espaço de potência, em que as pessoas podem ser protetivas entre si. Nem todo mundo vai estar preparado para acolher uma demanda de saúde mental, mas precisamos tentar direcionar essas demandas a um espaço de cuidado para as pessoas, seja na política pública de saúde ou com recursos particulares.”
Questionado pela BBC News Brasil, o Instituto Brasileiro de Jogo Responsável (IBJR) disse que “reforça que o jogo é, e deve sempre ser, uma fonte de entretenimento (…) e nunca deve ser utilizado como forma de ganhar dinheiro rápido e fácil”, e acrescentou que “o mercado das apostas online está em um período muito importante, o de regulamentação”. Entre os membros da entidade estão a bet36, a betway, a NetBet e outros.
A reportagem não conseguiu localizar o contato de representantes do “Fortune Tiger”, o jogo do tigrinho, no país.
*Os nomes originais foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados