Antonio Cicero tinha pressa. Nos últimos meses, era isso o que ele demonstrava — e dizia com todas as letras — para o marido, o figurinista Marcelo Pies, com quem cultivava um longo relacionamento desde 1984. Pouco depois de receber o diagnóstico de Alzheimer, em junho de 2023, o poeta e filósofo se tornou sócio da fundação Dignitas, uma das poucas instituições no mundo a receber estrangeiros, em Zurique, na Suíça, para realizar o suicídio assistido em conformidade com as leis do país europeu. Antonio mantinha uma certeza inabalável: ele não queria, sob nenhuma hipótese, ter a vida afetada pelos sintomas da doença sem cura. A opção pela morte assistida — algo a que o acadêmico sempre defendeu em textos e conversas entre amigos — foi “uma decisão puramente racional”, como conta, ao GLOBO, o viúvo do escritor, que morreu, aos 79 anos, nesta quarta-feira (23), por meio de um procedimento de eutanásia.
Só Marcelo Pies sabia dessa escolha. Entre o restante da família, nenhuma pessoa a mais foi avisada. Nenhum colega, nenhum conhecido. Ninguém. Esta era a vontade de Antonio Cicero. Irmã do imortal da Academia Brasileira de Letra (ABL), a cantora e compositora Marina Lima — com quem o poeta criou letras de sucesso, entre as quais “Fullgás” e “Pra começar” — foi informada do fato apenas na última terça-feira (22), na véspera do procedimento. Ela está inconsolável e sem condições de realizar qualquer pronunciamento, como esclareceu ao GLOBO uma pessoa próxima à artista.
— Ninguém foi consultado. Antonio não queria. Ele só avisou ontem [na terça-feira, dia 22] a irmã Marina, que ficou arrasada, mas entendeu e aceitou sua posição — relata Marcelo, que deixará a Suíça, na próxima quinta-feira (24), rumo ao Brasil, com as cinzas do marido. — Cicero era muito racional. Ele tinha urgência [em realizar o procedimento], pois temia que a doença piorasse e perdesse de repente a plena consciência, o que impediria todos os planos. Foi uma escolha puramente racional.
Parceiro de vida de Antonio Cicero por quatro décadas, Marcelo esteve ao lado do marido ao longo de todo o processo burocrático que um delicado procedimento como este exige. Foram dezenas e dezenas de exames, laudos e atestados médicos para que a instituição autorizasse a morte assistida. Inicialmente, a eutanásia seria realizada em agosto de 2024. Nesse período, porém, Marcelo estava ocupado com o trabalho como figurinista na série inédita “Praia dos ossos”, que só terminou de ser rodada no último dia 12 de outubro. “A contragosto”, como Marcelo rememora, Antonio Cicero aceitou que a data fosse adiada para 23 de outubro. E assim foi feito.
— Antonio sempre, sempre defendeu a liberdade de se cometer eutanásia e suicídio assistido. Nisso, ele foi de uma coerência admirável. Por isso, não reagi com tanta surpresa [a esta decisão] — afirma Marcelo. — Com toda a certeza, foi uma morte digna. Antonio morreu em paz, segurando a minha mão, muito tranquilo e sem nenhuma ansiedade. Depois do medicamento, ele dormiu e, em meia hora ou um pouco mais, morreu. O futuro para quem tem Alzheimer é sabido. Ainda não há cura nem tratamento eficaz. Respeitei a decisão dele e o apoiei. Admiro imensamente a coragem e a determinação. Ele sempre apoiou todas as formas de liberdade, e essa foi mais uma.
Numa carta deixada com o marido — e destinada a amigos e familiares —, Antonio Cicero frisou que “estava lúcido bastante” para entender a situação “insuportável” em que se encontrava. “Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo”, relatou ele, em referência aos sintomas provocados pelo Alzheimer.
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Últimos dias em Paris
Os últimos dias foram de paz e felicidade, do jeito que o poeta ansiava, como conta o viúvo. Antes de desembarcarem na Suíça, Antonio e Marcelo passaram dois dias em Paris, na França. O escritor queria se despedir da cidade que tanto admirava. Na ocasião, o casal visitou museus, foi a restaurantes elogiados e passeou por cartões-postais. Sem lamúrias. Como destacou na carta que deixou, da mesma forma que “esperava ter vivido com dignidade”, Antonio Cicero também “esperava morrer com dignidade”.
— Fomos ao Beaubourg [o Centro Georges Pompidou] almoçar no restaurante Georges e ver uma exposição sobre o movimento surrealista. Jantamos no Atelier, do finado chef Rebuchon, que continua sensacional, e fomos pela milésima vez admirar a Sainte Chapelle e também a Brasserie La Coupole — repassa Marcelo, ao GLOBO.
O figurinista aponta que falar abertamente sobre a escolha do marido ajuda a desmontar tabus e ideias erradas, muitas delas ancoradas em preconceitos, acerca da eutanásia.
— Quanto ao preconceito em relação a eutanásia e/ou suicídio assistido, vejo isso ser cada vez mais aceito por diferentes tipos de pessoas. Ele vem diminuindo, me parece. Mas tem que ficar claro que esses recursos só são possíveis nos casos de doenças graves, com sofrimento atestado e sem cura — ele pondera. — Tudo só foi feito depois de as autoridades suíças aceitarem o caso mediante os comprovantes. Se mesmo assim as pessoas tiverem preconceito, aí só pode ser por dogmas religiosos. Sobre isso, Cicero fala na declaração que deixou.
Pois bem, não custa relembrar o que ele escreveu:
Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer. Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação. A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas — senão a coisa — mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los. Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!