Com apenas seis votos no Colégio Eleitoral, Nevada é a unidade da federação americana decisiva menos consequente para o resultado da corrida pela Casa Branca este ano. Nem por isso ficou em segundo plano para as campanhas de Donald Trump e Kamala Harris, que não passaram 15 dias, desde as convenções partidárias, sem comandar um evento de peso no estado. Na quinta-feira, a vice teve o reforço de Jennifer Lopez em comício voltado aos hispânicos.
A disputa presidencial está tão acirrada que, se o republicano vencer na Pensilvânia e a democrata na Carolina do Norte — algo plausível pela média das pesquisas hoje —, os votos de Nevada podem decidir quem comandará o país a partir de janeiro. Mais especificamente, por seu histórico eleitoral, os votos dos 25% de eleitores latinos do estado, concentrados em Las Vegas. Em uma subversão da célebre — e malandra — frase, o New York Times resumiu o raciocínio de democratas e republicanos assim: “O que acontece em Vegas pode decidir o pleito de 2024”.
Desde 2008, com Barack Obama, os democratas não perdem disputas para a Presidência em um estado que, durante as duas últimas décadas, parecia destinado a virar uma extensão sem praia da Califórnia, sua vizinha que ruma apressada à esquerda. Com Los Angeles e Phoenix, capital de seu outro vizinho, o Arizona, Las Vegas forma o “triângulo da diversão” do Oeste americano, marcado pela forte presença das indústrias do entretenimento e do turismo. Seus cassinos e hotéis empregam trabalhadores sindicalizados que tradicionalmente votam em peso nos candidatos democratas.
Mas a transformação de Nevada foi interrompida bruscamente pela pandemia, quando o estado viveu uma crise econômica muito mais sensível do que a de seus dois vizinhos. Parte central da coalizão democrata, os latinos sofreram de forma desigual com a combinação de inflação alta (a segunda maior do país), desemprego (que ultrapassou, no momento mais drástico, os 20%, e este ano estacionou em 5,2%), e a maior crise imobiliária da década nos EUA.
Com legislação que protege de forma desproporcional os proprietários e a migração de moradores de outros estados para lá durante a pandemia, Nevada ainda se debate, três anos depois, com a ressaca da multiplicação de despejos e de aluguéis triplicados. Em 2022, os republicanos venceram a eleição para o governo do estado com a plataforma de desapropriação de terra federal para a construção de casas populares, mas o projeto não saiu do papel, por, criticam, falta de vontade política de Biden. Inspirada pelo desastre do mercado imobiliário em Nevada, Kamala reagiu com a promessa, se eleita, de subvenção federal para cidadãos de classe média interessados em comprar sua primeira casa.
Trump vê a eventual vitória em Nevada como confirmação de que levou para a direita a maioria dos trabalhadores de colarinho azul do país. O ex-presidente está à frente de Kamala no estado na média das pesquisas, ainda que por 0,5 ponto percentual, na prática um empate. Há quatro anos, Biden venceu seu antecessor na Casa Branca por pouco mais de 33 mil votos em um universo de 2,5 milhões de eleitores.
Dos 17 distritos eleitorais do estado, os republicanos são favoritos em 15, todos localizados em áreas com poucos habitantes. Para os democratas, a fórmula da vitória tem sido abrir frente considerável nos dois outros, onde ficam, respectivamente, Las Vegas e Reno. Juntos, concentram 90% do eleitorado e quase a totalidade dos latinos. Mas os votos têm minguado e não foram suficientes para segurar o governo estadual há dois anos.
Se o olho do furacão da crise ficou para trás — no ano passado os cassinos de Las Vegas embolsaram US$ 13,5 bilhões, quase o recorde estabelecido na pré-pandemia —, moradores e trabalhadores do entretenimento e do turismo seguem pagando aluguel alto, gasolina idem sem transporte coletivo de massa, e com compensação salarial nula pelo aumento do preço dos alimentos.
Gorjetas na campanha
Na icônica Strip, motor do estado com seus resorts de estética peculiar e maior destino turístico de Las Vegas, a frase “com o Biden tudo ficou mais caro” é em geral seguida por “e na época do Trump tínhamos mais dinheiro para gastar”. Durante a campanha, o republicano anunciou que, se eleito, as gorjetas dadas aos trabalhadores de hotéis e cassinos não seriam mais taxadas. Depois de dizer inicialmente que não se resolveria assim o quebra-cabeças econômico do estado, Kamala passou a defender a proposta após perceber sua enorme popularidade em Nevada.
— Ela copiou desavergonhadamente nossa iniciativa. Fiquem com o original! — debochou Trump na semana passada em comício em Vegas.
O podcast “Today, Explained” (“Hoje, explicado”, em tradução livre), do Vox, convocou na terça-feira o oráculo das urnas locais, Jon Raslton, editor-chefe e criador do site jornalístico Nevada Independent, para decifrar o que acontecerá na semana que vem no estado. A resposta: “Os republicanos votaram antecipadamente em maior número e estão confiantes. Já os democratas estão preocupados e apostando as fichas nos jovens e independentes, que tendem a votar em sua maioria no dia da eleição. Não dá para fazer previsão aqui, está mais apertado do que nunca.”
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Pesa na estratégia dos dois lados o fato de que o estado será um dos dez a decidir nas urnas se inclui na Constituição estadual a proteção ao direito ao aborto, tema que tem levado mais mulheres e apoiadores dos democratas às urnas. Outra disputa importante é a de uma vaga no Senado, que pode decidir o controle da Câmara Alta do Capitólio. A democrata Jacky Rosen busca a reeleição, mas aparece na média das pesquisas com vantagem curta, de 4,6 pontos percentuais sobre o capitão de reserva do Exército Sam Brown, um republicano que quase morreu no Afeganistão, quando teve 30% do corpo destruído após um ataque talibã.
O trumpismo o apresenta para a base republicana como os democratas fizeram com Obama em 2004: uma estrela em ascensão com potencial nacional. Como Trump, ele tem cortejado os hispânicos e os asiáticos, que hoje representam 12% dos eleitores do estado, em sua maioria filipinos. Oferece aos dois estratos um mix de valores conservadores (“de família”) e foco no empreendedorismo, com aceno de incentivo para os donos de pequenos e médios negócios.
60% defendem aborto
Do outro lado, Rosen busca definir o adversário como “extremista antiaborto”, dizendo não haver lógica em se votar pela defesa ao direito na Constituição e no republicano. Pesquisas mostram que 60% dos eleitores locais defendem a moção. Na semana passada, o site Politico acessou pesquisa interna dos republicanos que mostrava a democrata disparando, com o dobro da vantagem apontada na média das pesquisas. O motivo seriam as seguidas propagandas que destacam a oposição ao direito ao aborto pelo capitão Brown. Mas a enquete também revelou tamanho considerável do voto divorciado, em Trump e Rosen.
Na reta final, republicanos batem na tecla de que, com Trump, os trabalhadores de Nevada voltarão a ter o mesmo poder de compra de cinco anos atrás. E democratas enfatizam o protagonismo que Kamala terá, se eleita, na defesa do direito ao aborto. Na noite de quinta-feira, ao lado de J-Lo, a vice convocou as eleitoras a condenar nas urnas “a invasão do governo em nossas vidas privadas de forma inédita por culpa de Trump e seus ministros conservadores na Suprema Corte”. Os dados estão lançados em Nevada.