Apoiadores de Evo Morales ocupam quartel e mantêm 20 militares como reféns na Bolívia

Onda de protestos tomou o país há 19 dias, com bloqueio de estradas importantes em defesa do ex-presidente, investigado pelo abuso sexual de uma menor de idade

Apoiadores do ex-presidente boliviano Evo Morales ocuparam um quartel e fizeram 20 militares de reféns em Chapare, no departamento (estado) de Cochabamba, na Bolívia. A informação foi anunciada em comunicado pelas Forças Armadas, destacando que armas e munições também foram tomadas por “grupos armados irregulares”. Em um vídeo divulgado pela imprensa boliviana, 16 soldados podem ser vistos cercados por camponeses que empunham paus com pontas afiadas.

Polícia retira bloqueio de estrada feito por manifestantes que apoiam o ex-presidente Evo Morales, após um confronto em Cochabamba

Polícia retira bloqueio de estrada feito por manifestantes que apoiam o ex-presidente Evo Morales, após um confronto em Cochabamba — Foto: FERNANDO CARTAGENA / AFP

“Lembramos que qualquer pessoa que pegue em armas contra a pátria é considerada traição e levante armado contra a segurança e a soberania do Estado”, afirma o comunicado emitido pelo Alto Comando, destacando que o pessoal mantido como refém “são filhos do povo cumprindo seu dever sagrado com a pátria”.

A ação acontece em meio à instabilidade política no país, que há 19 dias vê uma onda de protestos maciços e bloqueio de estradas em resposta à suposta “perseguição judicial” contra Evo, que foi de aliado a inimigo do presidente Luis Arce no ano passado.

Horas antes, vídeos que circularam na imprensa local e nas redes sociais mostraram cerca de 2 mil manifestantes invadindo o quartel militar do Regimento “Cacique Juan Maraza”, perto de Tipnis, como são conhecidos os territórios indígenas do Chapare, no departamento de Cochabamba, onde Evo Morales tem sua maior base política.

— O Regimento Cacique Maraza foi tomado pelas centrais de Tipnis. Eles [apoiadores de Evo] cortaram nossa água, nossa eletricidade e nos tomaram como reféns — disse à AFP um militar, sob condição de anonimato.

Estilingues como armas

Cochabamba, localizado no centro do país e com conexão à capital La Paz, se tornou o epicentro dos protestos que tomaram a Bolívia e fecharam 20 estradas do país nas últimas semanas. Camponeses, indígenas e mineiros, em apoio a Evo, bloquearam quilômetros de estrada com pedras, troncos e fogueiras e dizem que estão preparados para uma “resistência” de semanas e até meses para defender o ex-presidente, investigado pelo suposto abuso de uma menor de idade durante seu mandato (2006-2019), acusação que ele nega.

Muitos manifestante usam estilingues — ou huaracas, como são conhecidos em quíchua, idioma indígena local — para atirar pedras nas forças de segurança. Desde o início dos protestos, 61 policiais e nove civis foram feridos em confrontos, vários com lesões cerebrais traumáticas, de acordo com informações oficiais.

— Essa é nossa arma secreta (…), herança de nossos avós — disse Carlos Flores, um agrônomo de 45 anos, à AFP, afirmando que entre os manifestantes há jovens camponeses “especializados” nessa prática. — Se ele [Arce] trouxer seus militares, estamos prontos para lutar. Vamos continuar até que ele renuncie.

Apoiadores do ex-presidente Evo Morales protestam na Bolívia — Foto: AFP
Apoiadores do ex-presidente Evo Morales protestam na Bolívia — Foto: AFP

Contexto político

Embora os protestos tenham começado em defesa de Evo, agora os manifestantes também estão exigindo a renúncia do presidente Luis Arce, que não encontrou uma saída para a crise econômica decorrente da escassez de moeda estrangeira. Na quarta-feira, Arce exigiu “o levantamento de todos os pontos de bloqueio”, ameaçando exercer “seus poderes constitucionais” para expulsar o grupo.

Arce foi ministro da Economia durante o governo de Evo e seu indicado para a presidência na primeira eleição após o golpe de Estado de 2019, em que o ex-presidente foi pressionado pelas Forças Armadas a renunciar e a senadora Jeanine Áñez ascendeu ao poder. A aliança entre os dois seguiu por um tempo, mas as ambições de Evo de disputar a próxima eleição presidencial, em 2025, levaram a um racha no Movimento ao Socialismo (Mas), que culminou na expulsão de Arce da sigla.

O tensionamento ganhou novos contornos depois que o Ministério Público pediu a prisão de Evo Morales no âmbito de uma investigação sobre o suposto abuso de uma menor de idade em 2015, quando era presidente. O ex-presidente classificou a acusação como “mais uma mentira” orquestrada pelo governo de Arce para tirá-lo da disputa presidencial, já que o caso foi encerrado em 2020.

No domingo, Evo divulgou um vídeo nas redes sociais relatando ter sido alvo de um ataque a tiros durante uma tentativa de prisão. Nas imagens, Morales aparece ao lado do motorista e, pelo telefone, declara: “Estão atirando em nós, estão nos detendo; rapidamente, mobilizem-se”. O vídeo mostra marcas de tiros no veículo e o motorista ferido, com sangue na cabeça e no peito. Segundo a Rádio Kawsachun Coca, 14 tiros foram disparados. Após o incidente, o ex-mandatário, líder dos cocaleiros, exigiu a demissão dos ministros de Governo e de Defesa e relatou o episódio à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O governo da Bolívia reagiu acusando Evo de armar um “teatro” com o seu suposto atentado, afirmando que os tiros disparados contra o seu carro foram feitos após ele tentar furar um posto de controle da polícia.

Violência nas ruas

Nas colinas rochosas que cercam a ponte Parotani, bloqueada por manifestantes, dezenas de sentinelas observam o horizonte para alertar sobre qualquer movimento. O objetivo da polícia é liberar a ponte para permitir o trânsito de veículos pesados que fornecem alimentos e combustível para Cochabamba, onde a paralisação tem provocado o aumento dos preços para consumidores e comerciantes.

Durante a espera, a pastora Nicolasa Sánchez, 59 anos, que fala quíchua, enrola fios de lã de ovelha entre os dedos dos pés descalços e trança novas huaracas. Ela faz cerca de três por dia. Quase todos os manifestantes têm uma. Eles giram os estilingues como hélices enquanto marcham sobre a estrada bloqueada.

— Nossas huaracas podem ser milhares. Nossa pedra nunca vai se esgotar — diz Juanita Ancieta, líder da Central de Mujeres Campesinas Bartolina Sisa.

Há uma semana, em Parotani, um policial quase perdeu o pé. O presidente Arce afirmou que ele foi atacado com dinamite. De tempos em tempos, explosões estrondosas são ouvidas na área. Mas os líderes afirmam que não têm explosivos.

— Pedimos às Forças Armadas e à polícia que não ataquem seu povo (…) que não manchem suas mãos com nosso sangue — diz Mariluz Ventura, representante de um sindicato de camponeses indígenas.

Uma cidadela surge ao redor da ponte Parotani enquanto ela segue fechada. Surgiram pequenas lojas vendendo roupas, acessórios para celulares e até vinagre para combater os efeitos do gás lacrimogêneo. Do outro lado da ponte, com paus e lonas de plástico, foi montado um acampamento com manifestantes de outros lugares.

— Este é o quartel-general. Cochabamba é o coração de toda a Bolívia, por isso este é o local do maior bloqueio nacional — diz Constancio Vallejos, um agricultor de 37 anos que veio do Trópico de Cochabamba com uma delegação de jovens agricultores.

Humberto Alegre, 31 anos, dirige uma das várias organizações que levam alimentos aos manifestantes. Ele diz que só ele entrega cerca de 500 rações por dia. A cidade está sem eletricidade há quatro dias, reclamam os manifestantes. Sem bombas motorizadas, eles sobrevivem com a água do rio.

— Nós vamos resistir. Essa é a luta que começamos. Iremos até o fim — diz Flores, segurando sua huaraca nas mãos.

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