Indígenas isolados do povo Mashco Piro, que vivem na fronteira do Acre com o Peru, buscam contato

Eles estão se aproximando de “parentes” que têm contato com homens brancos. No Peru, guerreiros desse povo mataram dois madeireiros em suas terras este ano, e pelo menos outros dois estão desaparecidos

Um grupo de indígenas isolados que vive numa faixa de terra da Amazônia, na fronteira do Acre com o Peru, identificados como os Mashco Piro, está cada vez mais em deslocamentos e estabelecendo contatos com indígenas aculturados e a chamada sociedade dos homens brancos.

O primeiro contato deste povo, cujos integrantes não conhecem o sal e andam completamente nus, envergando apenas adereços e tinturas pelo corpo, além do arco e flechas como arma, deu-se em 2020.

O encontro foi relatado na época pelo cacique Cazuza Kulina, da Terra Indígena (TI) Terra Nova, onde vivem os Kulina Madiha, no Alto Rio Envira, fronteira do Acre com o Peru.

Imagem capturada pela Survival International, mostrando os indígenas isolados Mashco Piro em seu habitat natural, na fronteira do Acre com o Peru/Foto: Survival International

Em relato ao ContilNet na época, o primeiro contato deu-se através de um único indígena à aldeia que pernoitou na casa de um morador local. No dia seguinte, um grupo de homens e mulheres, além de crianças, chegou ao local no total entre 10 a 20 indivíduos.

À época, antropólogos ouvidos pela reportagem disseram que este tipo de contato é raro em relação a isolados e só acontece quando eles se sentem em meio a graves ameaças.

O temor dos antropólogos com este contato foi que o encontro se deu no auge da pandemia da Covid-19, o que poderia dizimar todos os isolados daquele povo caso algum contraísse a doença e voltasse à aldeia original. Não há registro se houve ou não infecção e infestação da doença na floresta.

Os indígenas são frágeis porque não têm o que os antropólogos e a medicina chamam de “memória imunológica” para resistir às mais simples gripes.

Indígenas Mashco Piro em ação, com flechas apontadas, registrada pelo jornalista acreano Gleilson Miranda/Foto: Gleilson Miranda

Cazuza Kulina disse que os “parentes”, como os indígenas aculturados tratam outros povos e o chamado homem branco com o qual se relacionam, os isolados deixaram a aldeia no dia seguinte levando alimentos como macaxeira, banana e milho, além de produtos como panelas, machados e algumas peças de roupa, cobertas e redes.

Cazuza Kulina, que se comunica na língua Madiha, disse ter encontrado dificuldades para se comunicar com os isolados. Ao fazer os relatos, o cacique não soube identificar a qual grupo ou etnia pertencem os indígenas que estiveram em sua aldeia, mas pelo que descreveu em relação aos adereços utilizados pelos visitantes, eles teriam sido identificados por antropólogos e outros profissionais que atuam na área indígena como membros do povo Mashco Piro.

Segundo o relato do cacique, os homens usavam uma linha amarrada ao pênis, o chamado cinto peniano, comum entre algumas etnias. Nenhum estava armado e teriam vindo de uma localidade conhecida e identificada pela Fundação Nacional Indígena (Funai) como Igarapé Maronal, no Alto Rio Humaitá.

Em 2014, já havia ocorrido contato de outro grupo de indígenas isolados também no Rio Envira com os Ashaninkas que vivem na Terra Indígena Kampa, no Alto Rio Amônia, região do Alto Juruá, também na fronteira do Acre com o Peru.

Na época, participou do encontro o sertanista José Meirelles, que por muitos anos viveu na limite da zona com a área onde vivem os isolados, região Rio do Ouro, no Alto Envira, região de Feijó. Aposentado, Meirelles hoje vive no interior da Bahia.

Foto registrada por uma organização peruana, ilustrando a presença dos Mashco Piro na Amazônia, um dos grupos isolados mais notáveis da região/Foto: Reprodução

Os novos indígenas que apareceram fazem parte de um dos 28 grupos isolados com registros confirmados na Funai em todo território nacional. O Acre é a região do país onde se concentra a maioria desses povos que não têm contato com a chamada sociedade dos brancos. Outros 86 grupos de isolados estão em estudo. Mas a orientação do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) é de que, quanto mais puderem viver em total isolamento, melhor para eles.

Os Mashco Piro seriam integrantes dos 86 grupos em estudos. Eles seriam o grupo indígena isolado mais populoso do mundo, embora não se saiba ao certo quantos indivíduos eles são. A estimativa é de que sejam um total de cerca de 750 pessoas, que vivem de forma nômade no território, percorrendo grandes áreas na Amazônia dos dois países.

A aproximação, no entanto, tem gerado preocupação entre indígenas, entidades e autoridades do lado brasileiro da Amazônia, que temem um perigoso contato na Terra Indígena (TI) Mamoadate, no Acre. Isso poderia gerar conflitos e, na pior hipótese, doenças a uma tribo sem qualquer imunidade.

Os Mashco Piro vivem na região da fronteira entre o Peru e o Estado do Acre. Eles passam a maior parte do tempo no lado peruano, mas periodicamente vão ao lado brasileiro, onde está o povo Manchineri, que tem contato com o homem branco.

Segundo o MPI, historicamente, os Mashco Piro compartilham a TI com o povo Manchineri de forma pacífica. Os Manchineri têm contato com os brancos. O cacique desse povo, Sebastião Manchineri, chegou inclusive a concorrer a cargos eleitos em eleições passadas.

Avistamentos ou vestígios da presença dos Mashco Piro no entorno das aldeias e roças dos Manchineri são relativamente comuns. A situação mudou recentemente: entre o final de outubro e o início de novembro, quando os Mashco Piro foram avistados mais próximos do que nunca. No dia 31 de outubro, em uma ação inédita, eles invadiram e levaram ferramentas de uma casa dentro da aldeia Extrema, dos Manchineri, a mais próxima da fronteira com o Peru.

Entre as hipóteses para essa aproximação no lado brasileiro estão a grave seca que atinge o território e, principalmente, a ação de madeireiros no lado peruano da Amazônia, que estariam gerando pressão para a saída dos Mashco Piro da área onde passam a maior parte do tempo.

No lado peruano, o ano tem sido marcado por conflitos entre invasores e o povo Mashco Piro, que causou a morte de dois madeireiros em setembro deste ano. O incidente foi noticiado pela Survival International, uma organização não-governamental internacional que defende os povos indígenas ao redor do mundo.

De acordo com a agência internacional, pelo menos dois madeireiros foram mortos em um encontro com os isolados do povo Mashco Piro na Amazônia peruana. Há também relatos de um madeireiro ferido e dois desaparecidos.

A tragédia gerou duras críticas da organização indígena Fenanmad, do governo peruano. Em uma declaração, a organização denunciou as autoridades pelo descumprimento de leis peruanas e internacionais, e pela falha em reconhecer e proteger o território Mashco Piro. Eles também pediram que todos os invasores, como os madeireiros que atuam na área, fossem removidos.

O ataque aconteceu perto do Rio Pariamanu, na região de Madre de Dios, em 29 de agosto, mas a informação só foi confirmada em 4 de setembro. A área em que o conflito ocorreu é parte do território ancestral dos Mashco Piro que foi vendida pelo governo para a exploração madeireira.

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