Opinião: “Doutrinação ideológica e partidária: inexistente ou inevitável?”

O que é doutrinação? Ou: qual a diferença entre ensinar e doutrinar? Quando se formula o tema assim, de forma abstrata, tais questões parecem complicadíssimas. Por isso se julga impertinente e pouco recomendável combater uma prática que não se sabe muito bem o que seja, ou como se possa identificá-la com a máxima objetividade em sala de aula. Afinal, a definição do fenômeno e seus modos de manifestação não são assumidos por uma parte da sociedade, cujos pressupostos ideológicos legitimam a mesma conduta que a outra parte reprova. Pior, o significado do termo “doutrinação” e sua aplicabilidade ao ensino escolar seriam, segundo alguns, disputas de natureza ideológica, mais ou menos como uma batalha entre a ideologia dos “com partido” e a ideologia dos “sem partido” pela conquista da hegemonia no ambiente escolar.

São especulações interessantes, embora não se ocupem de nada semelhante ao tipo de práticas contra as quais o Escola Sem Partido tem se posicionado. Na verdade, a convicção inabalável de que não seja possível ensinar sem viés ideológico, dogma com que atacam a fórmula “sem partido” como ilusória ou disfarce de “algum partido” (reacionário, fascista etc.), é aquilo que desmente outra acusação lançada pelo mesmo grupo. Quando alegam insistentemente que a doutrinação não seria mais que uma paranoia da “extrema-direita”, ou um pretexto perverso para seu avanço em nome de um falso apartidarismo, se explicita como nem sequer acreditam ser possível alguém não usar a educação escolar para panfletar, uma óbvia confissão indireta.

Sala de aula/Foto: Javier Ramirez/Free Images

O que realmente incomoda estudantes, famílias e mesmo professores são casos nos quais os exageros e desvios são óbvios

Tal desmentido da inexistência do problema, na medida em que os que o negam em uma frase o assumem como inevitável na frase seguinte, ainda é reforçado pela certeza com que garantem que somente uma outra ideologia, representando interesses de grupos inimigos, obstinados por poder, poderia estar “por trás” movendo um projeto tão “politicamente incorreto” como este. Esta é a hipótese da astúcia do Escola Sem Partido. Mas há também a hipótese da ingenuidade do projeto, acusação de quem não duvida da honestidade dos que o defendem, mas os trata como idealistas lutando por algo irrealizável. Ou seja, em vez de suspeitar de que trariam uma ideologia oculta que desejam tornar hegemônica no ensino, não passaria de uma fantasia atraente para leigos no assunto.

Um aspecto ainda teórico que se deve considerar é a distinção entre pressupostos propriamente políticos e de outros tipos mais básicos, como pressupostos ontológicos ou simplesmente lógicos, sem os quais não poderíamos nem sequer formar uma frase ordenada e com sentido compreensível. É evidente que não há teses sem pressupostos, mas nem todo pressuposto é ideológico, nem necessariamente tem a função de respaldar proselitismo partidário. É perfeitamente possível restringir-se a comunicar conceitos de uma área particular de conhecimento, com sua lógica própria, sem que se esteja, consciente ou involuntariamente, assumindo assim uma posição política, identificável segundo a atual conjuntura nacional.

Enfim, nas escolas realmente existentes no país, alheias a esta problemática teórica mais sofisticada, brevemente aludida nos parágrafos anteriores, o que realmente incomoda estudantes, famílias e mesmo professores, entre os quais não há consenso sobre a questão, são casos nos quais os exageros e desvios são óbvios. Esta reação de grupos da sociedade civil não se deve a nada de discreto, sutil, ou que se possa considerar interpretação meramente subjetiva dos que se julgam prejudicados pela doutrinação.

É certo que alguns episódios levam a controvérsias, em que se julga estar diante de prática inadequada numa aula, enquanto outros defendem a legitimidade daquela mesma conduta. No conteúdo concreto da proposta do ESP, os deveres do professor, contidos no cartaz afixado em sala de aula, definem os tipos de conduta que se busca evitar. Quando ocorrem casos determinados, reconhecer que se descumpriu tais deveres envolve um exercício hermenêutico. Mas o desafio que surge, de fato, em algumas circunstâncias, ou quando se imagina hipoteticamente situações que colocam dificuldades para a interpretação, não permite negar a evidência da impertinência de tantos discursos e procedimentos já abundantemente registrados.

Ao contrário do que dizem a respeito, o problema não está na ideologia assumida por um professor, ou em que ele tenha publicamente opinião política e até militância partidária. Tampouco há qualquer tema-tabu no ensino escolar que alguém proponha proibir ou condenar, por sua relação com a pauta de certos grupos ativistas. Mas a politização que se pode reivindicar, dentro de limites que se aceitam como legítimos, não deve ser confundida com disparates.

Nada justifica que conteúdos curriculares cuja oferta ao estudante deveria estar garantida sejam subtraídos, “esquecidos”, adulterados, falsificados, convertidos em caricatura sensacionalista, que sataniza ou diviniza personagens e grupos, assim como estigmatiza ideias ou simples palavras que se desejam banir do vocabulário. Pior ainda nos casos em que nem há a intenção de se aproximar do conteúdo curricular, substituído frequentemente por comentários improvisados sobre o noticiário, quando não por campanha eleitoral explícita em horário de aula.

Ao contrário do que dizem a respeito, o problema não está na ideologia assumida por um professor, ou em que ele tenha publicamente opinião política e até militância partidária.

Além do prejuízo intelectual resultante, por um lado, da falta de conhecimentos fundamentais para a formação de um repertório necessário, como da assimilação acrítica de crenças que induzem o entendimento ao erro, por outro, é também nocivo como exemplo prático. O rigor e a honestidade intelectual também precisam ser aprendidos, manifestando-se pelo cuidado que um professor tem com a definição dos conceitos, a correta exposição de teorias e argumentos, a exatidão de dados estatísticos e o respaldo de informação histórica em documentos.

Pode-se dizer que, apesar da intenção de um doutrinador ser o estímulo à participação política, esforçando-se por convencer seus estudantes ao engajamento, à adesão à sua mesma agremiação, as tantas imposturas, fraudes, falácias e bravatas a que apelam com este fim inviabilizam o resultado desejado. Maior vantagem para entender a realidade social e se tornar ativo politicamente nela possui o cidadão que leva o estudo a sério. Só nesse caso, efetivamente, há pensamento digno de ser considerado crítico.

Bruno Bertolossi de Carvalho, bacharel em Antropologia, é doutorando em Filosofia na Universidade Pontifícia Bolivariana, em Medellín (Colômbia).

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