A explosão do barco que fez várias vítimas em Cruzeiro do Sul, no dia 7 de junho, serviu de alerta para a necessidade de criação de um centro de atendimento especializado para vítimas de queimaduras na região Norte. Já está sendo articulada a criação de uma unidade no Acre, que deverá servir de base para a instalação de um centro de alta complexidade destinado a atender queimados de todo o Norte do país.
A informação é do chefe da Unidade de Atendimento a Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), em Brasília (DF), cirurgião plástico José Adorno, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). Adorno estava no centro das articulações de socorro às vítimas da explosão do barco no Acre, que foram enviados para tratamento em Goiânia (GO), Belo Horizonte (MG) e Brasília, numa operação que envolveu os governos estaduais e federal e uso de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB).
Em entrevista exclusiva à Agência de Notícias do Acre, José Adorno, que atua há cerca de 26 anos no setor de queimados do HRAN, faz um balanço sobre o acidente no Acre, as necessidades evidenciadas e aponta soluções para esse tipo de problema, além de avaliar a situação das vítimas e os cuidados que ainda precisarão ter – dos quatro pacientes encaminhados a Brasília, três deles já receberam alta médica e o terceiro poderá ser liberado ainda esta semana.
Como o senhor tomou conhecimento e qual o seu envolvimento com o socorro às vítimas da explosão do barco em Cruzeiro do Sul, no Acre?
Soube no sábado, dia seguinte ao acidente, por meio de grupos de redes sociais, mobilizado como presidente da SBQ. Fiz contatos com hospitais profissionais locais e com a secretária de saúde, Mônica Feres, que relatou as situação que estavam recebendo os pacientes e que era grave. Como o Acre não tem estrutura específica para atendimento a queimados, pela urgência e como é um tratamento longo, decidiu-se pela remoção desses pacientes.
Como isso foi feito?
Foi acionado o sistema de regulação do SUS (Sistema Único de Saúde), que regula a disponibilidade de leitos e UTIs. Foram disponibilizadas seis vagas em Belo Horizonte (MG) e uma Goiânia (GO), que contam com estrutura para receber os pacientes mais graves, além de quatro vagas para Brasília, que é referência no tratamento de queimados. O sistema de regulação do SUS, que é o maior sistema público de saúde da América Latina e precisa ser melhor conhecido, permitiu que o Acre pudesse oferecer e se responsabilizar financeiramente pelo tratamento dos pacientes.
Foi uma operação ampla, que envolveu governos locais e federal, incluindo o Ministério da Defesa e a Força Aérea Brasileira, a FAB…
A preocupação era transporte. Os pacientes estáveis poderiam ser transportados de avião comum, mas outros estavam mais graves, entubados, precisando de ventilação mecânica, o que exigia UTI aérea. Era uma estratégia de guerra. Fizemos articulações, o governo do Acre (via Representação em Brasília) acionou a Presidência da República e o Ministério da Defesa, pois quem tinha essa estrutura era a FAB. Em cerca de 24 horas saiu a ordem para transportar os pacientes e tudo funcionou como um relógio suíço.
Como o senhor avalia a gravidade do acidente no Acre?
O protocolo é de catástrofe. Aqui no HRAN, por exemplo, se eu recebo até cinco, seis pacientes numa tarde, entra no protocolo comum. Se são mais do que cinco até dez, é catástrofe média e tenho que mobilizar outros recursos. Se tiver mais de 10 ou 15, é catástrofe grande. Lá foram 18 pacientes. E em Cruzeiro do Sul, à margem do rio Juruá. Então precisou montar uma operação militar, de guerra, para conseguir atender e transportar as vítimas.
Qual a diferença entre atendimento de vítimas de queimaduras e de outros traumas?
O trauma é completamente diferente e exige treinamento específico. Quando a pessoa se queima, ele já perde um dos principais sistemas de proteção, que é pele e que controla nossa temperatura, nosso meio interno, as infecções…Quando a pessoa perde a pele, começa a perder líquido rapidamente, entra em insuficiência renal e, se for um grande queimado, é sujeito a infecção muito precocemente e morre fácil de sepse, infecção. Por isso precisa de um centro especializado, com equipe treinada para atendimento imediato.
Então o acidente no Acre foi um alerta para a necessidade dessa estrutura no Estado?
O acidente no Acre exigiu uma operação gigante, com transferência de vítimas numa distância de mais de três mil quilômetros, e mostrou a necessidade de treinamento e estrutura especializada para atendimento às vítimas de queimaduras naquela região. É isso que estamos articulando, junto com o governo do Acre por meio da Secretaria de Saúde.
Como isso será feito?
A SBQ tem curso específico nessa área. Inicialmente vamos treinar as equipes locais e discutir uma política de atendimento para esse tipo de vítima na Região Norte, que não conta com essa assistência. Isso está sendo tratado com a secretária de Saúde do Acre, Dra. Mônica Feres. Já tivermos reunião via Skype com equipes locais do Samu e da área de regulação do SUS. O curso presencial ocorrerá entre os meses de julho e agosto.
A ideia, então, é que seja estruturado esse tipo de atendimento no Acre e expandir essa experiência para a Região Norte?
A ideia é que o Acre seja um caso piloto para que, a partir dele, se possa criar um centro de referência de alta complexidade no Norte do país, para atender às vítimas de queimaduras de toda essa região, que tem distâncias difíceis de serem vencidas. Quanto mais cedo esses pacientes chegam a um centro de referência e recebem um atendimento especializado, mais se reduz a mortalidade e a morbidade, que são as complicações desse trauma.
O que é preciso para o funcionamento de um centro desse?
Estrutura e equipe. Um centro de alta complexidade tem capacidade para atender os casos mais graves. Precisa de centro cirúrgico especializado, áreas para fazer curativo, materiais especiais e, essencialmente, equipes bem treinadas para tratamento de queimados. Montar estrutura é fácil, é construção e equipamento, embora dependa de decisão política. Difícil e demorado é montar uma equipe multidisciplinar nessa área.
Quanto às vítimas da explosão do barco em Cruzeiro do Sul encaminhados para tratamento em Brasília, qual a avaliação?
Três deles já tiveram alta médica: Francisco Rodrigues de Oliveira, José Francisco do Nascimento Neto e Francisco Rodrigues da Rocha. O outro, João Oliveira da Silva, depende de avaliação da ferida nesta sexta-feira. Eles tiveram queimaduras superficiais, porém extensas, entre 30% a 40% do corpo. Passaram por alguns procedimentos sob sedação para limpeza das feridas, utilização correta de curativos e coberturas especiais, além de atendimento psicológico, nutricional e até do serviço social.
Brasília é referência no atendimento a queimados e há o atendimento de uma equipe multidisciplinar e interdisciplinar, com reuniões semanais para avaliar a situação integral de cada paciente, porque isso implica no tratamento e no impacto da volta deles para seu lugar de origem.
Depois de liberados, eles precisam continuar o tratamento?
Sim, de forma ambulatorial. Fazemos a contra-referência (reencaminhamento) desses pacientes para as equipes do Acre, informando o tratamento recebido e sugerindo os tratamentos ambulatoriais que precisarão seguir. Vão precisar de fisioterapia, malha compressiva e os cuidados com a pele que devem fazer.
Por quanto tempo eles precisarão de atendimento ambulatorial?
Varia muito, porque a resolução cicatricial é individual e também depende da adesão deles ao tratamento, se eles vai vão comparecer às consultas marcadas e cumprir as orientações médicas. São pacientes crônicos, pois ficarão com as cicatrizes que devem ser tratadas ao longo do tempo e precisam de dedicação ao tratamento.
Qual a lição que fica da tragédia no Acre?
Primeiro, é preciso melhorar a prevenção a esse tipo de acidente por meio da fiscalização dos barcos. Segundo, é preciso melhorar o atendimento às vítimas de queimaduras, como estamos articulando no Acre com o treinamento de equipes e abrindo a possibilidade de estruturação de centro especializado de atendimento às vítimas de queimaduras na região. Também é preciso que haja, no País, campanhas de prevenção de queimaduras, inclusive nas escolas, para as crianças, como ocorre nos países desenvolvidos.