O Marajó é um dos lugares apontados pela rede de proteção à infância com os mais altos índices de violência sexual contra crianças e adolescentes, ainda que esses dados atualizados ainda não existam oficialmente. Apenas na “CPI da Pedofilia”, realizada entre 2008 e 2010 em todo o Pará, mas com foco maior no arquipélago, a projeção foi de cerca de 100 mil casos de violência sexual contra crianças e adolescentes, 20% deles com crianças de até 5 anos. Dados da Pnud de 2013 (última disponível) já apontavam que somente dois dos 16 municípios do arquipélago, Soure e Salvaterra, tinham Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) considerado médio. Entre os outros, sete tinham IDH baixo e outros sete, muito baixo. Um deles, Melgaço, tinha o pior do país.
Foi em Melgaço que, em 2016, houve um flagrante que resultaria na primeira – e única até agora – decisão judicial que responsabilizou uma empresa de transporte marítimo pela exploração sexual de crianças e adolescentes nas balsas de carga. A sentença emblemática da juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região Elinay Melo, que também é membro da Associação Juízes para a Democracia, foi premiada no Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Nela, a juíza cita o descumprimento de várias normas – a começar pelo fato de as balsas serem destinadas ao transporte de cargas, não de passageiros – e responsabiliza a empresa pelos crimes cometidos contra crianças e adolescentes ocorridos naquele ambiente. De acordo com o flagrante que deu origem a esse processo, ao se aproximar de barco de uma balsa cheia de caminhões, com várias pequenas canoas atracadas, os policiais viram várias crianças pularem no rio. Ainda assim, a diligência encontrou uma menina de 9 anos e uma de 18, escondidas debaixo dos caminhões com uma mochila com preservativos e gel lubrificante, como conta a juíza nesta entrevista à Agência Pública , lembrando que crianças em situação de extrema vulnerabilidade são muitas vezes exploradas sexualmente em troca de alimento, óleo diesel, caderno, roupa. “É uma colonização do corpo. Elas são vistas como coisas.”
Sobre as declarações da ministra Damares Alves, de que o problema da violência sexual contra crianças e adolescentes no Marajó estaria relacionado à “falta de calcinha”, a juíza é taxativa: “Ela mais uma vez culpabiliza a vítima, repassa para a vítima e para as famílias que estão naquela condição de extrema vulnerabilidade, de ausência total do Estado e de condições mínimas de vida, a responsabilidade pela violência”.
Continuar lendo a matéria