Psicóloga e professora da Ufac fala sobre relações familiares durante a pandemia

A professora da Universidade Federal do Acre (Ufac), PhD e psicóloga clínica, Patrícia Yano, em artigo enviado à reportagem do ContilNet neste sábado (25), falou sobre a reconfiguração da família neste momento de pandemia que o mundo todo enfrenta.

Patrícia é professora da Ufac e doutora em psicologia clínica/Foto: Reprodução

Falando sobre Gestalt-terapia, Teoria Sistêmica e sistemas íntimos, Yano refere-se a este momento de isolamento social e de novos ajustamentos como “agora insustentável”.

Confira na íntegra o artigo. 

A reconfiguração da família como um suporte ao agora insustentável

  1. O que está sendo dito sobre relações familiares na pandemia?

Certamente, a pandemia alterou as relações humanas. Das problemáticas acessíveis nas mídias por exemplo, num artigo sobre relações familiares, de 27 de março de 2020 do The New York Times, os neologismos Covidivórcio e Coronababies são citados. Nas regiões afetadas significativamente pelo Covid-19 na China, Espanha, Itália e França, nestes 03 últimos inclusive – que abriram espaços nos hotéis para os que sofreram violência (BBC Londres), os índices de divórcio e violência doméstica aumentaram. Referências científicas sobre o impacto da pandemia nas relações familiares estão sendo construídas neste vivido que nos é novo.

O Campo de incertezas suscita a ansiedade elevada – ansiedade está baseada na insegurança da incerteza. É um tempo de dificuldade extrema, de desafios que exigem posturas de bondade e amor e que, ao mesmo tempo, a atenção para os déficits emocionais é amplificada.

Uma comparação que faço sobre as relações familiares hoje é como acontece com quando pessoas de um sistema familiar são reunidas após um período de distanciamento geográfico, como acontece com imigrantes, militares dentre outros. Diante da Re-União as expectativas podem proporcionar frustrações, tédio e raiva. As conexões podem se desconectar.

A alteração da rotina familiar com o trabalho remoto, as crianças fora da escola, as dificuldades financeiras, a perda dos padrões relacionais e rotineiros e da liberdade nos direcionam ao enlutamento dos padrões anteriores. Nessa alteridade, uma família encontra-se fisicamente mais unida como não se fazia há tempos na história e, assim, a parentalidade é vivida de uma maneira inédita revelando, várias nuances de uma configuração familiar renovada, potencialmente, mas não necessariamente, saudável.

É possível perceber o aumento da violência contra mulheres, crianças e animais. Os mais vulneráveis são os que assumem a carga da afetividade negativa em suas variadas formas.

A palavra relação expressa o estabelecimento da ligação entre as pessoas. Ocorre então uma religação neste momento entre as pessoas da família. Retornamos ao nosso espaço de pertencimento real ou potencial e podem emergir a tensão entre o EU (pessoa/parte) e o Nós (família/todo) – necessidades da parte e do todo.

Nessa relação emergem expectativas que são projetadas em cada membro familiar e na família. O renascimento de uma nova rotina familiar e, a condição de ajustamento aflitivo será mais desafiadora, certamente, quanto mais rígida e controladora for a Gestalt familiar considerando os seus membros e seu funcionamento enquanto um sistema.

Uma expectativa é que a família seja provedora de proteção e afetividade: segurança, acolhimento, amorosidade e, encaramos os mitos sobre os conflitos – a de que a harmonia familiar é o normal, e não é bem assim! Falamos de saúde em Gestalt-terapia, como equilíbrio no movimento. Acolhemos a nossa vulnerabilidade e transitoriedade; escutamos bem de pertinho; isso vale também na relação familiar. O conflito indica possibilidade de um novo ajustamento saudável.

É desafiador ainda pensar que, em situações de distresse prolongado habita uma tendência a ver o negativo e amplificar nossas defesas/interrupções: projetamos, introjetamos, defletimos, racionalizamos sobre o mundo e sobre nossa família também. Emergem disfunções transgeracionais – padrões rígidos de situações inacabadas no sistema familiar. O isolamento tende a escancarar as situações inacabadas nas duas dimensões: do Eu e do Nós – O que estava sendo, por exemplo, defletido, agora é convocado ao contato. A nível da dimensão Eu – os temores, os processos pessoais também são convocados ao contato. Por exemplo, a suspensão de um projeto pessoal pode ser muito frustrante. A ideia da invulnerabilidade pode alimentar essa rigidez.

Para que a família se torne um apoio é necessário reconhecer a dimensão do sentido da crise para a família – as dificuldades financeiras, as limitações de espaço na casa, a situação de um membro que adoece e torna o ambiente ansiogênico para os demais. As condições de trauma e aflição como essa que vivemos, impactam em nosso sistema de crenças.

Felizmente, podemos compreender a crise como uma travessia e assim, identificar que há uma potência transformadora do Eu, do Nós e do mundo pós-eventos aflitivos como estamos vivendo – vou falar aqui a nível de Nós, a nível da Gestalt familiar.

  1. Interrupções de contato e relações familiares

Assim como uma pessoa – o Eu, uma família – o Nós, se interrompe com funcionamentos excessivos em um ou mais estilos de contato:

Membros ou famílias com estilos projetivos lançam suas expectativas no outro. Não há uma validação e sim uma crença de que o outro atenda às suas expectativas; Nos estilos introjetivos tende-se a absorver as experiências no âmbito familiar e os membros agem de acordo com alguém eleito como autoridade para este fim. Os membros, atuando de maneira como é orientado verbal ou não verbalmente, vão adoecendo, uma vez que evitam a destruição necessária para assimilar o que lhes é dito; Nos estilos retroflexivos há uma qualidade de isolamento dentro da família. O que é esperado em relação ao outro tende a não ser compartilhado e assim é vivido de maneira solitária; Nas posturas egóticas se tenta manter o controle e isso é bastante ansiogênico diante de um campo atual de surpresas e incertezas; Nas confluências, os membros da família tendem a alta ansiedade também, em virtude da não fronteira em relação ao Nós, aumentando a vulnerabilidade; Nos estilos deflexivos a situação atual é desviada, atuando-se como se nada estivesse acontecendo, o que dificulta a atualização de novas formas de funcionamento. Ou, nos entorpecimentos de um funcionamento dessensibilizado, apatizado, pré-mórbido ou próprio da depressão.

O que você sente na relação familiar? Falo da estética, de sentir a relação. Talvez isso ajude a compreender a qualidade dela.

  1. A reconfiguração da família como um suporte ao agora insustentável

Podemos nutrir a funcionalidade resgatando a fluidez no sistema familiar. Enquanto no agora a condição de Eu-no-mundo com o outro está tão explícito, considero importante equilibrar o autocuidado e cuidado com outro. Partindo de uma função menos egológica (Eu-no-mundo) e mais ecológica (Eu-no-mundo com o outro), para criar condições de crescimento no agora insustentável.

Um aspecto otimista é pensar que sempre, inevitavelmente, estamos criando mudanças. O que ocorre agora é que elas são potencializadas, pois quebram, traumatizam um padrão aparentemente rígido.

Pensar as funções de contato saudáveis na relação familiar, implica principalmente, em um convite para que o Eu, para que cada um de nós, possa rever nossas projeções, introjeções enfim, nossas expectativas e formas de relação no sistema familiar. Por exemplo, será que estou intensificando o meu olhar nas falhas, ficando mais com as faltas (o que julgo como déficits) do que com as presenças (o que julgo como virtudes)?

Outro ponto que considero relevante é convocar nossa responsabilidade e, na Gestalt-terapia, responsabilidade é habilidade-em-responder: acolher e nutrir a responsabilidade por nossa vulnerabilidade e, melhorar nossa habilidade em responder de maneira mais espontânea, em lugar das velhas respostas estereotipadas e habituais que tínhamos enquanto família – O novo Campo convoca uma nova forma de funcionar enquanto família: uma nova Atmosfera – conforme o conceito de Tellenbach (1919-1994), uma nova atitude estética e consequentemente, um tônus emocional reconfigurado.

A construção conjunta e dialogada de uma nova rotina, a possibilidade de realização de projetos familiares possíveis neste contexto, p. ex. cuidar da organização e manutenção dos espaços da casa ou de repensar a metodologia de educação dos filhos.  Reitero a importância da eleição conjunta e dialogada das necessidades. Tudo isso depende, contudo, da abertura para o diálogo. A criação de uma nova aliança familiar depende da abertura ao diálogo. E abertura ao diálogo é uma disponibilidade para a escuta interessada – que acolhe o conteúdo do outro e não interesseira – que ocorre já pensando no que vai fazer com o que escutou.

Enquanto sentido da família, entendo que seja relevante resgatar os aspectos preservados: quais são as forças ou ajustamentos criadores possíveis nesse momento? A palavra-chave neste sentido é Co-criação.

Acredito, como acredito no potencial humano, que a família terá sua transformação como uma nova Gestalt no mundo e, encontrar novas maneiras de tocar – por validação, por amorosidade e cooperação é nosso desafio. Menos controle, mais escuta das necessidades genuínas da família e, criatividade na busca por soluções para construção da resiliência familiar.

O vazio é fértil, o tédio é fértil e neles há uma potência transformadora. Uma dose de crença na autorregulação do mundo é essencial; Uma dose de crença na autorregulação da família é fundamental.

Por fim, quero resgatar a filosofia japonesa do Wabi-Sabi que recentemente publiquei: “As coisas são imperfeitas, incompletas e impermanentes – e, suas não-belezas, como as dores que nelas habitam, convocam sua beleza. E é assim que, diante da aflição, podemos construir poesia e graça”.

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