A cantora Daniela Mercury enviou, na última sexta-feira (16), uma carta ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, solicitando uma reunião para debater a criminalização da LGBTfobia no Brasil. No texto endereçado ao ministro, que também é presidente do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ela demonstra especial preocupação com o pedido da Advocacia-Geral da União (AGU) ao STF, na última semana, para responder se a decisão da Corte que permitiu a criminalização da homofobia e da transfobia, reconhecendo-as como crime de racismo, atinge o princípio da “liberdade religiosa”.
As ponderações de Daniela Mercury são baseadas justamente na decisão tomada pelo STF, no ano passado, considerada histórica, pois uem ofender ou discriminar gays ou transgêneros está sujeito a punição de um a três anos de prisão e, assim como no caso de racismo, o crime é inafiançável e imprescritível.
Na ocasião, ela e a mulher, a empresária Malu Verçosa, acompanharam pessoalmente os debates na casa. “A petição da AGU é vaga, não explica a que tipo de situações de fato se refere, mas visa a legitimar condutas discriminatórias”, escreveu a cantora.
Em entrevista na tarde deste deste sábado, a artista contou que Fux já recebeu a carta e disse acreditar que “o diálogo será estabelecido em breve”. Ela também disse estar interessada em saber o posicionamento do indicado para o STF por Bolsonaro após a aposentadoria do decao da Corte, Celso de Mello, sobre o assunto.
Celso de Mello foi o relator do caso. A resposta ao pedido da AGU poderá ser direcionada ao seu substituto. O desembargador Kássio Marques foi indicado pelo presidente Bolsonaro e será sabatinado pelo Senado Federal na próxima semana. Ele pode rejeitar o embargo ou levar o tema para debate em plenário.
Embora o Supremo tenha julgado o caso em junho de 2019, a decisão só foi publicada no último dia 6, e o advogado-geral da União, José Levi, protocolou o embargo declaratório após cinco dias úteis. ou redistribuída.
— Acho bem importante que a gente consiga essa resposta, para entendermos um pouco sobre como vai ser a continuidade desse processo — afirmou, na entrevista a seguir. [Foto de capa: Célia Santos/Divulgação]
O GLOBO — Por que decidiu mandar a carta ao minsitro Fux?
DANIELA MERCURY — Acabei de ser convidada para participar do Observatório de Direitos Humanos do CNJ, que foi uma ideia do ministro Luiz Fux, e que me insere num grupo que vai dialogar pelos direitos humanos. Tivemos a primeira reunião há alguns dias, e isso me deu a ideia de que esse era um caminho de diálogo. Solicitei a reunião porque acredito que há o lugar do diálogo sobre o assunto. Como se trata de algo referente a uma decisão que o Supremo tomou há um ano e quatro meses e que eu também estava acompanhando, achei que valia mandar uma carta para o ministro, para que ele possa me dizer também o que ele considera possível e para levar para dentro do CNJ a discussão.
O pedido da AGU a surpreendeu?
Como a decisão já foi tomada e já estava valendo, agora é o momento em que os promotores deveriam ajuizar as ações penais por crime de homofobia e transfobia. Uma das coisas que queria saber era justamente como estavam sendo julgadas as ações de homofobia e transfobia, para entendermos como é que a criminalização estava acontecendo na prática. E, enquanto estava discutindo sobre esse assunto com todos os meus amigos e membros da comunidade LGBTQUIA+, aparece esse recurso da AGU, sem o menor sentido, já que tudo foi esclarecido na própria decisão do STF. São 600 páginas no acórdão da criminalização da homofobia, foi um julgamento longo, profundo e muito respaldado, com a relatoria do Celso de Mello. Eu e toda a comunidade estávamos nos sentindo muito resguardada por essa decisão. No momento em que estamos começando a conseguir ações vem esse questionamento? Quanto mais rápido esclarecermos isso, mais sucesso teremos na luta contra a impunidade.
O que mais lhe preocupa no recurso da AGU?
A Advocacia Geral da União é um órgão importante, não podemos subestimar nada. Temos que entrar com muita consistência, confrontar o que não faz sentido imediatamente, para não ficar dúvida. Afinal, estamos num país democrático, e quando uma instituição de Estado questiona uma decisão do Supremo, é algo sério e importante. Temos que considerar todos os riscos possíveis. É preciso agir com rapidez para não deixar que nada afete uma decisão que é fruto de tantos anos de lutas de tantas pessoas e que é fundamental também numa sociedade extremamente violenta. O que gostaria muito de saber agora é o que o indicado para o supremo, Kassio Nunes, pensa sobre o assunto. Ele será sabatinado nos próximos dias, e acho que essa é a grande questão. Acho bem importante que a gente consiga essas respostas, para entendermos um pouco sobre como vai ser a continuidade desse processo.
Já obteve alguma resposta para a carta?
Sei que ele (Fux) recebeu e está refletindo como pode acolher todas as informações da carta e a melhor maneira de absorvê-las. Temos uma reunião já marcada para dezembro e, com certeza, esse diálogo vai acontecer de qualquer maneira, porque é um espaço de conversa sobre esses assuntos de direitos humanos. É um espaço legítimo de diálogo. Agora, o que ele vai fazer a com essa carta, ele que vai definir.
Como a sua visibilidade como artista pode ajudar nesse debate?
Quanto mais a sociedade civil está organizada, mais conquistas temos, melhor fica a democracia. Tenho participado e me manifestado quando acho que é fundamenta, é uma forma consistente de participar da vida pública e de tudo o que é coletivo e nos toca. Acho que a sociedade brasileira precisa se organizar ainda mais. Artistas são cidadãos com muito poder, obviamente, com muita facilidade de comunicação. As pessoas prestam atenção no que a gente diz. Por isso é que trabalho há tantos anos na área social.
O que mais tem lhe preocupado no Brasil contemporâneo?
A gente tem uma parte da população cuja cidadania não está completa porque o Estado não consegue dar os direitos dessas pessoas. A magnitude da população foi compreendida agora, com o auxílio emergencial, em que se viu a quantidade de pessoas para as quais aquele dinheiro era praticamente tudo o que tinham para sobreviver. Identificou-se um pouco como está esse quadro social do Brasil, quem são os mais vulneráveis, quem precisa de mais atenção. Para mim, uma questão crucial deste momento é como vamos encontrar caminhos nas políticas econômicas para resolver esses problemas. Estamos vendo, por exemplo, que, se não fosse o SUS, estaríamos numa situação muito pior na pandemia. O que a sociedade quer é distribuição de renda e reconhecimento, e as lutas identitárias estão todas aí também batendo à porta e ocupando espaço. E tem a fome. Já estávamos vislumbrando, na ONU, que poderíamos extinguir a fome da face da Terra. E agora ela voltou com muita força por causa da pandemia e das últimas crises econômicas.