Guaraná Jesus, do Maranhão, foi criado por farmacêutico ateu e comunista

Nesta quinta-feira (20), de passagem pela cidade de Bacabeira, no Maranhão, o presidente Jair Bolsonaro experimentou o famoso Guaraná Jesus, a bebida rosada que orgulha o estado do Nordeste, e disse: “Agora, eu virei boiola igual a maranhense, é isso? Olha o guaraná cor-de-rosa do Maranhão aí, ó. Quem toma esse guaraná vira maranhense”. Apesar de ser cor-de-rosa, o Guaraná Jesus foi criado por um vermelho: o farmacêutico Jesus Norberto Gomes era comunista, além de ateu, patrono das artes e louco por carnaval. A história de Jesus, aliás, vai virar filme.

— A declaração homofóbica de Bolsonaro deve servir para colocar ainda mais em evidência o pensamento progressista do inventor do Guaraná Jesus — disse a produtora carioca Fernanda Kalume, da Kalstoï, que está tocando o projeto.

Juntamente com Ben-Hur Real, da produtora maranhense 10Dobro Prod, ela trabalha num documentário sobre a vida e o legado do homem que, em 1927, criou uma “bebida gasosa de suave e fino paladar”, que, informava o rótulo, prevenia o “cansaço físico” e era eficaz no tratamento das “depressões causadas pelas bebidas alcoólicas”.

— Ou seja, era ótimo para a ressaca — brincou Fernanda.

Fernanda Kalume e Ben-Hur Leal, produtores de um documentário sobre o criador do Guaraná Jesus [Foto: Divulgação]

Jesus Norberto Gomes nasceu em Vitória do Mearim (MA), em 1891. Aos 14 anos, seguiu para São Luís em busca de trabalho. Arrumou emprego numa farmácia, onde uma de suas tarefas era anotar recados. Jesus era semianalfabeto e, para que ninguém descobrisse, decorava os recados e também as fórmulas dos remédios. Um médico que percebeu a inteligência de Jesus ensinou-o a ler e a escrever.

Já dono da farmácia, Jesus importou da Alemanha uma máquina de água gaseificada e começou a produzir “gasosas”. Ateu, ele não permitia que seus funcionários repetissem a expressão “graças a Deus”, mas distribuía os lucros com os trabalhadores e já pagava 13º salário muito antes de virar lei.

Apesar de nunca ter se filiado ao Partido Comunista, Jesus era de esquerda e chegou a ser preso após a Intentona Comunista, uma tentativa de insurreição revolucionária, capitaneada por aliados da União Soviética, que fracassou em 1935. Jesus também era um mecenas: dava dinheiro a artistas e era proprietário de um pequeno acervo de obras de arte. Faleceu em 1963, aos 72 anos. Em 2001, a Coca-Cola comprou a marca Guaraná Jesus.

‘Bolsonaro é o contrário de Jesus’

Fernanda pôs na cabeça que produziria um documentário sobre Jesus no dia 5 de janeiro de 2019, após um longo voo do Rio a São Luís — ela tem raízes em Balsas, no sul do Maranhão. No avião, ela se sentou na mesma fileira de duas senhoras e passou toda a viagem conversando com elas. Quando estavam prestes a pousar, uma delas contou que era neta de Jesus e estava levando a mãe para visitar os cenários de sua infância maranhense.

— A gente passou o voo todo falando de política, de cinema, da nossa paixão pelo Maranhão, e, quando ela me disse que era neta de Jesus, fiz duas perguntas: “como você só me conta isso agora?” e “Por que não fizeram um filme sobre ele”? — lembrou Fernanda.

A família de Jesus topou o projeto. A bisneta de Jesus, Roberta Gomes, se juntou à produção. As gravações iam começar em novembro, mas a pandemia atrasou o calendário. O filme será dirigido pelo cineasta Frederico Machado. O documentário terá depoimentos em áudio dos antigos funcionários de Jesus, que foram gravados em fitas cassete guardadas pela família. Depois de finalizar o documentário, Fernanda pretende investir numa cinebiografia “no estilo ‘Dois filhos de Francisco’”.

A piada preconceituosa de Bolsonaro escandalizou os produtores.

— Bolsonaro é o contrário de Jesus — disse Fernanda, em alusão à ideologia conservadora abraçada pelo presidente. — Ele não respeita os maranhenses. Para os maranhenses, o Guaraná Jesus é o leite materno. Os nordestinos espalhados por todo o Brasil, quando bebem essa bebida cor-de-rosa, lembram-se de casa.

Ben-Hur Real ressaltou ainda que o comentário do presidente, além de homofóbico, mostra como ele desconhece os costumes maranhenses. Em “maranhês”, “boiola” se diz “qualira”.

Na noite de quinta-feira, em uma live, Bolsonaro ensaiou um pedido de desculpas por sua piada.

— A brincadeira que eu fiz não foi televisão, não. Tava conversando com o cara “Pô, o guaraná é cor-de-rosa aqui”. Falei uns troços lá, alguém pegou, divulgou, não sei o que, como se eu tivesse ofendendo aí quem quer que seja no Maranhão. Muito pelo contrário. Com quem eu tava brincando era um maranhense, que levou na esportiva. Agora, a maldade está aí — afirmou.

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), foi ao Twitter anunciar que pretende processar o presidente: “Bolsonaro veio ao Maranhão com sua habitual falta de educação e decoro. Fez piada sem graça com uma de nossas tradicionais marcas empresariais: o Guaraná Jesus. E o mais grave: usou dinheiro público para propaganda política. Será processado”. [Capa: Alan Santos/PR]

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