Para quem olha de fora, parece debelada a crise provocada pela nota em que o Ministério da Defesa e os comandantes militares reagem às declarações dadas na CPI da Covid sobre corrupção nas Forças Armadas. Mas quem conversa ao pé do ouvido com os militares não chega à mesma conclusão. O clima de tensão continua. Só a mira é que virou para o outro lado da Praça dos Três Poderes.
Parte relevante dos oficiais de alta patente e dos praças acredita genuinamente que há uma confluência de interesses, ou, para ser mais direta, uma armação mesmo, para tirar Bolsonaro do poder e colocar Lula em seu lugar, por meio de uma fraude nas eleições. Há oficiais estrelados, incluindo o próprio ministro da Defesa, Walter Braga Netto, compactuando com a ideia fixa bolsonarista de que a urna eletrônica é suscetível a burla e não pode ser auditada — mesmo que nenhuma fraude tenha sido comprovada até hoje e ainda que várias rodadas de auditoria digital das urnas eletrônicas tenham sido feitas sem sobressaltos em eleições passadas.
Os fardados que orbitam ideologicamente em torno do presidente da República consideram desproporcional a resistência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a implantar o voto impresso. Não é só o ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do tribunal, que eles veem como inimigo. Assim como Bolsonaro, os oficiais detectaram uma articulação de bastidores dos também ministros do Supremo Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes na origem da recente manifestação pública de líderes de 11 partidos contra o voto em papel.
Há, ainda, um incômodo com a determinação do corregedor-geral do TSE, Luis Felipe Salomão, para que Bolsonaro apresente as provas que diz ter de que houve burla nas eleições de 2018. “Não dá para provar que houve fraude, mas também não dá para provar que não houve” é o discurso comum, que ecoa uma fala recente do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
A aversão nas Forças Armadas ao Supremo é conhecida e, se ela agora está abafada, é muito mais por força do gesto recente do próprio Bolsonaro, que se reuniu com o presidente da Corte, Luiz Fux, e baixou o tom. Depois de dizer que “ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”, o presidente da República reformulou sua fala e passou a dizer que o que ele realmente quer é a contagem pública dos votos (não está claro em que a contagem que o presidente propõe seria diferente da atual sem o voto em papel, mas esse é outro problema).
Por enquanto, a tensão está controlada, mas nada indica que uma nova crise não emergirá de repente, trazida por alguma nota ou declaração ameaçadora de um dos comandantes das Forças, como vimos na semana que passou.
A má notícia, para os militares, é que a resistência ao voto em papel não é grande apenas entre os magistrados. Mesmo os deputados consideram improvável que a proposta do voto impresso seja aprovada no Congresso. Além disso, oito ex-procuradores eleitorais e 36 subprocuradores da República já se opuseram ao projeto. Estes últimos ainda pediram ao procurador-geral, Augusto Aras, que investigue Bolsonaro por abuso de autoridade, ao colocar em dúvida o sistema eleitoral e a própria realização do pleito.
Para além de fazer a defesa da segurança da urna eletrônica, o que de fato mobiliza esses atores é o entendimento de que, assim como Donald Trump, Bolsonaro fomenta a desconfiança sobre a confiabilidade das eleições para poder sustentar uma iniciativa golpista caso perca no voto em 2022.
Da mesma forma que Trump, Bolsonaro já saiu vitorioso das eleições dizendo que certamente teve mais votos que o registrado. Sua insistência plantou na sociedade um debate que, até 2018, era absolutamente periférico. E, se o presidente brasileiro seguir a cartilha trumpista até o final, podemos esperar ainda muita turbulência — com um agravante nada desprezível.
Trump não tinha as Forças Armadas americanas do seu lado. Quando seus seguidores invadiram o Capitólio, o Estado-Maior Conjunto enviou à tropa uma mensagem classificando a ação como um ataque ao processo constitucional americano e dizendo que “os direitos de liberdade de expressão e reunião não dão a ninguém o direito de recorrer a violência, sedição e insurreição”.
Aqui, as conversas na caserna vão na direção oposta. Ecoando o discurso de fraude, a ala fiel a Bolsonaro se diz disposta a agir para defender o presidente e impedir a volta da esquerda ao poder. Ninguém sabe ao certo o que isso significa, mas certamente não é um convite para um passeio no parque.