O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadas (Ipea) estima que em 2022 sejam em torno de 281,4 mil pessoas em situação de rua, sendo que destes, 30 mil estão na cidade de São Paulo, que enfrentou um aumento de 38%. A única contagem realizada foi em 2008 pelo Governo Federal, na gestão do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A política nacional de pessoas em situação de rua foi feita entre as capitais e cidades com até 100 mil habitantes. Ao todo, foram contabilizadas 31 mil em situação de vulnerabilidade.
Não é de hoje que a população do Acre se depara com pessoas que estão enfrentando esse mesmo cenário em Rio Branco. A maioria fica pelos arredores do centro da cidade, Segundo Distrito, Raimundo Melo e Estação. Questões sociais e até mesmo problemas familiares levam essas pessoas a ter as ruas como habitação.
Outro lugar de destaque, que ao longo do tempo ganhou maiores proporções, está localizado exatamente na entrada do bairro Seis de Agosto, entre o posto de saúde Ary Rodrigues e a famosa Caixa d’água da Seis. Ali, ficam jovens que fazem uso de álcool e outras drogas até idosos.
“Aqui somos uma comunidade onde todos se respeitam, mas eu penso em largar tudo isso, sim. Tenho fé em Deus que vou conseguir deixar tudo e ter uma vida normal porque a palavra de Deus diz que tudo é possível para aquele que crê, e tudo que tem um começo tem um fim”, declara Mariza Santos, de 49 anos, que está em situação de rua.
Dados e estatísticas
O Brasil não sabe exatamente quantas pessoas estão em situação de rua. A população do país é contada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas, a base do censo é feita por domicílio e, como essas pessoas não têm moradia convencional regular, acabam não aparecendo nas estatísticas.
Os dados referentes às pessoas que estão em situação de rua são incertos porque não há um instrumento de coleta de informações que seja satisfatório para garantir qual é o número exato. A Prefeitura de Rio Branco, em 2019, apresentou dados que apontaram 262 pessoas em situação de rua, sendo 77 mulheres. Em 2021, na gestão do prefeito Tião Bocalom, os números apresentados foram de quase 350 pessoas. Dados divulgados pelo Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) estimam que, em 2023, haja em torno de 450 a 500 pessoas em situação de rua na capital.
De acordo com o Coordenador Administrativo do Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial (Natera), Fábio Fabrício, os dados são frágeis e isso significa que não se sabe ao certo quantas mulheres estão nas ruas, quantas foram estupradas, quantas foram mortas, quantos são idosos e deficientes. “De fato, esta é uma pauta que o estado do Acre tem dívidas”, reforçou.
“Tudo que tem um começo, tem um fim”
Mariza Santos Filho, de 49 anos, é uma das cidadãs que estão em situação de rua. Ela conta que faz uso de substâncias químicas e bebidas alcoólicas há 12 anos. Sua vida antes de iniciar o uso abusivo de substâncias era bem diferente da que enfrenta hoje, teve pouco estudo, sabe apenas assinar seu nome, teve quatro filhos e durante o decorrer da vida fez de tudo um pouco para ter seu sustento.
Sua maior tristeza é não poder conviver com seus quatro filhos por conta da vida que leva. Um de seus filhos também virou dependente químico e está pelas ruas de Rio Branco. “Tive dois filhos e duas filhas, mas nenhum vive comigo porque eu levo essa vida. Já perdi meu pai e minha mãe, tenho dois irmãos que moram no município de Sena Madureira e Boca do Acre, mas a minha relação com eles não é boa”, conta.
Apesar das circunstâncias, ela afirma que gosta de estar nos espaços que frenquenta e não pretende ir para uma casa de apoio ou reabilitação. Sente que todos os outros companheiros de rua são a sua família. Mas, pretende um dia abandonar a vida que leva atualmente.
“Aqui somos uma comunidade onde todos se respeitam, mas eu penso em largar tudo isso, sim. Tenho fé em Deus que vou conseguir deixar tudo e ter uma vida normal porque a palavra de Deus diz que tudo é possível para aquele que crê, e tudo que tem um começo tem um fim”, declara.
“Deus, não me deixe morrer sem a minha salvação”
Antônio José Evangelista de Lima, de 53 anos, é natural de Sena Madureira e também faz uso abusivo de bebidas alcoólicas. Antes de entrar para o alcoolismo foi casado e teve duas filhas, era evangélico e por cinco anos conseguiu largar o vício, mas, a separação com a sua ex-esposa o fez voltar a beber compulsivamente.
Apesar de ter uma boa relação com seus parentes, que vivem na sua cidade de origem, seus familiares não sabem que, na verdade, Antônio está em situação de rua.
“Eles apenas sabem que moro em Rio Branco, mas, não imaginam que eu esteja na rua. Nunca tive coragem de falar para eles a situação em que vivo, porque eu sei que minha família não quer isso para mim, principalmente porque uma das minhas filhas era muito apegada a mim, e se eu falar que eu bebo muito, moro na rua e durmo pelas calçadas, ela pode até ter depressão e isso me deixa muito triste, por isso eu optei por não dizer a eles toda a verdade”, revela.
Antônio nunca quis ir para uma casa de apoio porque pensa que vai ficar preso. Ele destacou que gosta mesmo é da liberdade, mas sabe que numa casa de apoio ou de recuperação vai ter comida e conforto, – e mesmo assim não tem interesse, mas pensa em abandonar as ruas e ficar perto de seus filhos. “A segurança que tenho são minhas filhas. Tenho minha mãe viva, mas, meu pai morreu quando eu tinha 16 anos. Terminei de criar meus irmãos trabalhando duro na época do falecimento de meu pai”, diz.
“Eu era evangélico, tocava violão e guitarra, aprendi na igreja. Sempre ia para os cultos, mas, quando eu chegava em casa, sempre tinha uma briga porque ela [a ex-companheira] não aceitava [o fato de ir à igreja]. Separamos e, por conta do que aconteceu, voltei a beber e ficar do jeito que estou hoje”, explica.
Em relação à sociedade, Antônio conta que as pessoas não os maltratam. Alguns até os ajudam de alguma forma, com dinheiro ou doando comidas, roupas e agasalhos em época de friagem. Quando conversa com Deus, ele sempre pede para que um dia tenha forças para abandonar o vício e agradece, porque apesar das circunstâncias, ainda está vivo (sic). Ao ser questionado se, por acaso, naquele momento pudesse estar frente a frente com Deus, o que ele pediria, disse com lágrimas nos olhos: “Deus, não me deixe morrer sem a minha salvação”, finaliza.
“Às vezes visito meus parentes e volto para a minha comunidade, com todos os meus companheiros”
O acreano José Ferreira de Oliveira, de 55 anos, relata que antes de iniciar o uso abusivo de álcool estudou apenas até a 5ª série, fazia trabalhos braçais, foi casado e teve dois filhos. O consumo de bebidas começou aos 12 anos. No decorrer de sua vida, o vício era moderado, mas depois tomou proporções diferentes.
Uma vez aceitou ir para uma casa de reabilitação, gostou da experiência, mas o vício pela bebida fez com que abandonasse o tratamento. Também tentou abandonar o vício por outras duas vezes, mas não conseguiu.
Hoje, tem uma boa relação com seus parentes, mas, para ele, o convívio com todos os seus amigos na rua o faz se sentir mais amado. “Às vezes visito meus parentes para ver se todos estão bem e volto para a entrada do bairro Seis de Agosto, para a minha comunidade, com todos os meus companheiros”, comenta.
José relata que nem todos os cidadãos o tratam bem. Alguns olham-no com preconceito por estar naquele local, já outros chegam, conversam e oferecem ajuda. “Fico feliz por existir pessoas assim, isso renova as minhas esperanças porque apesar de tudo ainda existem pessoas boas no mundo”, diz.
Apoio Psicossocial
O Núcleo de Apoio e Atendimento Psicossocial (Natera), criado em 2013, é um órgão auxiliar dentro do Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), com objetivo de atender famílias ou indivíduos que tenham problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas e natureza social. As ações são voltadas à saúde mental das pessoas em situação de rua.
Grande parte das pessoas em situação de rua de Rio Branco são usuários de álcool, drogas, e sofrem de outros transtornos psiquiátricos. Segundo a psicóloga do MPAC, Bruna Oliveira, não é possível saber se o uso abusivo de drogas antecede algum transtorno psiquiátrico ou se adquire após o contato com as drogas, assim como os motivos que levam uma pessoa a estar nessa situação são diversos, complexos e subjetivos.
Algumas medidas são feitas pelo Núcleo para tentar amenizar a situação. Serviços do poder executivo, como o Centro Pop, consultório na rua, serviços de abordagem social e serviços de acolhimento,, além do Centro de Atenção Psicossocial: Álcool e Drogas (Caps AD) III, atuam na perspectiva de ofertar acolhimento, atendimento psicológico e psiquiátrico a essas pessoas em situação de rua a partir do princípio da voluntariedade.
De acordo com a procuradora de justiça do MPAC l e coordenadora geral do Natera, Patrícia Rêgo, o órgão foi feito para apoiar e assessorar o MP – que está ligado à Procuradoria Geral de Justiça -, além de atender o público, indivíduos, pessoas e comunidades que tenham questões relativas ao álcool, outras drogas e saúde mental. Também possibilita diálogo em rede de proteção.
“Pensando estrategicamente neste assunto, todas as demandas do MP atuam na interface de álcool, saúde mental e outras drogas porque vivemos numa região com intenso tráfico de substâncias químicas e essa questão permeia a maioria dos problemas sociais a qual o MP tem buscado enfrentar nos dias de hoje”, diz.
Há vários serviços sendo oferecidos pelo órgão na capital, como os de abordagem social, que funcionam 24 horas nas regiões do Centro, Segundo Distrito, Raimundo Melo e Estação; e o Centro de Referência Especializado, conhecido como Centro Pop, para as pessoas em situação de rua – que seria o coração da rede que atua nas regiões.
Segundo o coordenador administrativo do Natera, Fábio Fabrício Ferreira da Silva, a existência desses serviços não pressupõe uma limpeza social, porque cada um tem uma história de vida, sofrimento, traumas e, muitas vezes, o uso abusivo de álcool e drogas pode ser uma forma de maquiar as frustrações da vida.
“Não podemos tirar essas pessoas da rua à força porque seria violação de direitos Tem pessoas com maior vulnerabilidade que engloba risco para si e para terceiros, aos quais a legislação possibilita alguma intervenção involuntária, mas essas políticas públicas, de fato, são para garantir que os cidadãos em situação de rua sejam atendidos de forma digna e satisfatória. Se eles quiserem sair das ruas e ser acolhidos, eles sairão; se tiverem infração penal, deverão responder na forma em que é cabível, mas não significa que eles terão algum tipo de tortura por parte do Estado ou da polícia por estarem em situação de rua”, relata.
A primeira vez que pessoas em situação de rua entraram em um Tribunal Constitucional no Brasil – não como réus, mas como cidadãos de direitos
O Supremo Tribunal Federal (STF) reuniu nos dias 21 e 22 de novembro, 63 expositores que representam as esferas do poder Executivo, Legislativo, Judiciário e Entidades de Sociedade Civil que atuam com pessoas em situação de rua.
O Ministério Público do Estado do Acre (MPAC) teve participação ativa com o tema “Estado de Coisa Inconstitucional da População em Situação de Rua”. O MPAC foi o único Ministério do país a participar de audiência pública realizada no Supremo Tribunal Federal e entregar contribuições para a Política da População de Rua do Brasil.
De acordo com Fábio Fabrício, foi a primeira vez que pessoas em situação de rua entraram em um Tribunal Constitucional no Brasil. “Não entraram como réus, nem como condenados ou culpados, mas, como um cidadão de direitos”, explica.
Danilo Lovisaro entregou ao ministro Alexandre de Moraes um documento sobre as contribuições do MPAC para uma política pública relacionada a pessoas em situação de rua no Brasil, voltando-se à garantia de direitos fundamentais. A contribuição escrita apresentada na audiência pública teve como propostas: Eixo Políticas públicas (Direito à Proteção Socioassistencial – Sistema Único de Assistência Social), Eixo acesso à justiça, Participação e Controle Social, direito à moradia e segurança pública.
Pessoas em situação de rua que foram vítimas de violência
Renan Almeida de Souza era conhecido como Nego Bau. Após perder seus pais, começou a usar drogas e, logo em seguida, passou a ficar mais pelas ruas do que na própria casa que tinha. Seu sonho era ser jogador de futebol. Sempre era visto no bairro Cohab do Bosque e na região do Parque da Maternidade.
Nego Bau foi morto no dia 15 de janeiro de 2022, sofreu lesão corporal gravíssima e tortura pelo mecânico Jefson Castro da Silva. O acusado foi condenado há cinco anos de prisão sem o direito de apelo à liberdade. O acusado, além de cometer o crime, gravou toda a cena em um vídeo que aparecia decepando os dedos de Renan.
Outra vítima foi o morador de rua, José Queiroz dos Santos, ferido com um golpe de faca enquanto caminhava no bairro Taquari.
Segundo informações da polícia, José foi atacado por uma pessoa desconhecida que desferiu um golpe de faca em seu abdome. Devido à violência, a facada fraturou a costela e perfurou o pulmão. Após o fato, o criminoso se evadiu do local na época.
Na região do Papouco (próximo ao centro de Rio Branco), o morador de rua identificado como Antônio foi espancado em via pública até ter seu maxilar quebrado. A polícia relatou que Antônio foi agredido por várias pessoas com chutes, pontapés e socos, deixado jogado no chão da calçada em frente ao Instituto São José. Populares acionaram a Polícia Militar e o Serviço Móvel de Urgência (Samu).
Um morador de rua não identificado morreu vítima de atropelamento na Via Chico Mendes. Segundo informações da polícia, uma motorista não identificada trafegava num carro modelo Honda Civic quando atropelou a vítima que atravessava a pista. O corpo foi arremessado a aproximadamente 40 metros, o carro ficou com a frente toda destruída. A motorista ficou no local para prestar socorro à vítima.
Campanha Aporofobia
Realizada pelo Padre Júlio Lancellotti da pastoral do povo da rua, de São Paulo, a campanha tenta acabar com a aversão a pessoas pobres e contra cidades que praticam o ódio contra moradores de rua.
Segundo a definição da Academia Brasileira de Letras, aporofobia significa repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos. Nas cidades brasileiras, ela aparece transformada em muitas ações, como o uso de grades e muros para impedir a aproximação de pessoas em situação de rua em suas casas e estabelecimentos e jatos de água para afastar essas pessoas mais vulneráveis.
O padre Júlio Lancellotti usa suas redes sociais para denunciar esses exemplos de maus tratos em várias cidades do país. “Muitas pessoas me mandam dezenas de imagens do Brasil inteiro, e eu divulgo. Nós não estamos propondo que as pessoas em situação de rua moram embaixo de viadutos. Mas, que nós não fiquemos só na hostilidade do afastamento dessas pessoas e sim, que seja da hostilidade para a hospitalidade e isso vale também para imigrantes, migrantes e refugiados. Aqui no Brasil a população de rua são refugiados
urbanos, porque ninguém os quer. Eles incomodam em todo lugar, então a questão é, nós vamos hostilizar ou acolher para ajudar a transformar”, relata o religioso.
Conheça o artigo 7 do Decreto n° 7.043
O decreto estabelece a política nacional da população em situação de rua, que visa vários eixos como políticas de saúde, saúde mental, política de assistência social, política de segurança pública, política de habitação e fruição dos bens culturais do país.
O artigo institui a Política Nacional para a população de rua disponível na internet.