A jornalista Glória Maria morreu nesta quinta-feira, no Rio de Janeiro, mas deixou um legado para o MMA que os mais novos talvez não façam ideia.
Em 2003, quando MMA ainda estava longe de ter a popularidade dos dias atuais e era um assunto quase proibido em TV aberta, ela viajou para o Japão para acompanhar Rodrigo Minotauro e Wanderlei Silva, que lutariam por títulos no Pride, evento já extinto, mas que era o principal torneio do esporte no mundo naquela época.
A reportagem ajudou a tirar alguns rótulos que a modalidade tinha, humanizar os atletas e mostrar a popularidade dos lutadores brasileiros do outro lado do mundo (veja o vídeo abaixo).
CLIQUE AQUI para ver o vídeo.
O Combate.com conversou com Minotauro e Wanderlei nesta quinta-feira para relembrar a reportagem e explicar a importância que Glória Maria teve na popularização do MMA. Para Rodrigo Minotauro, ela foi a “madrinha do esporte”. O lutador, inclusive, chegou a batizar a sala de imprensa de uma de suas academias com o nome da jornalista em 2013.
– Tinha o nome dela, a gente colocou em homenagem a ela porque foi a primeira pessoa da TV aberta brasileira a fazer uma matéria grande sobre nosso esporte. Foi a madrinha do nosso esporte, podemos dizer assim. Tínhamos relação de amizade. Encontrei com ela algumas vezes, a gente conversava, sempre falava do esporte, a importância que ela teve pro esporte. Nós conversávamos de várias coisas. Criamos amigos em comum, pós-evento a gente sempre trocava ideia, eu sempre frisando quão importante ela foi.
A reportagem para o Fantástico em 2003 ficou na memória de Minotauro e Wanderlei, que recordaram do impacto causado na vida deles após a exibição.
– Foi imensa porque era a primeira vez que a gente estava saindo em rede nacional, que o MMA estava sendo visto em rede nacional. Não sei quem fez a pauta, mas realmente estava nos dando um espaço que a gente nunca teve. Dali pra frente tivemos muito mais abertura em toda a imprensa e foi um papel primordial. Sou muito grato a ela, um personagem fantástico. Senti uma diferença, foi uma matéria que todo mundo viu, deu audiência espetacular e a gente ficou muito feliz de ser aceito pela grande mídia desta maneira. O público queria muito assistir às lutas, saber o que estava acontecendo no Japão e através desta matéria a gente conseguiu mostrar realmente como a gente é popular lá. Ela passou a semana toda com a gente, foi uma matéria muito bem feita e foi muito legal aparecer aqui no Brasil. – disse Wanderlei.
CLIQUE AQUI para ver o vídeo.
– A gente lutava no Japão e tinham 80 mil pessoas no Tokyo Dome. Chegava no Brasil e passava como anônimo. Só o fã “hardcore” conhecia. Lembro que na volta foi um marco. Totalmente diferente. Fizemos Fantástico na semana seguinte, foi totalmente diferente. Tem quatro grandes marcos no MMA: essa matéria, que realmente o MMA cresceu depois daí e começamos a ir em outras TVs, até na Globo. Abriu portas pra programas de auditório e tudo, que a gente não ia de jeito nenhum. A minha disputa de título do UFC, ganhar em Vegas, em 2008, deu outro boom na carreira, mas porque essa matéria puxou. A luta do Anderson Silva (com o Vitor Belfort) foi um boom grande. E a vinda do UFC pro Brasil. Foram quatro grandes marcos de mídia na TV brasileira, mas quem puxou tudo eu acredito que foi essa matéria dela – acrescentou Minotauro.
Na gravação no Japão, Glória Maria contou para Minotauro uma de suas histórias favoritas de sua carreira, quando cobriu a invasão da embaixada brasileira do Peru por um grupo terrorista, em 1996.
– Lembro muito bem de uma história que ela me contou, dos primeiros encontros com ela. A embaixada do Peru tinha sido sequestrada, tinha um embaixador brasileiro lá dentro. Tinham vários caminhões da CNN na frente. Ela estava com um câmera pra fazer as matérias pra Globo e não tinha tanta estrutura. Botaram um caminhão de transmissão, de tudo. E ela alugou um lugar na frente. Ela contando pra gente com emoção, era ótima de contar história. Ficou acordada a noite inteira, lá pelas tantas da manhã viu um movimento na frente do lugar. Ela correu, todo mundo dormindo, ela atravessou e foi a primeira pessoa a botar o microfone na frente e entrevistou o embaixador do Brasil. Ela contou essa história e achei interessantíssimo o que ela fez – recordou o ex-lutador, que viu a história servir de exemplo para a cobertura de sua luta no Japão.
– Quando ela foi pro Japão, tinham todas as TVs do Japão na frente, mais de 25, TVs das Filipinas, Coreia, eles priorizavam essas. E ela falou: “Quero te entrevistar assim que você descer do ringue”. Fiquei até sem graça de falar: “Glória, infelizmente não vou conseguir a credencial pra você ficar na frente, vai ficar mais atrás, mas vou falando com o pessoal no corredor na descida do ringue e vou na sua direção”. E ela falou: “Você viu eu falar da embaixada lá do Peru? Viu o que te falei? Quando você descer do ringue, eu vou estar com o microfone”. Pisei no primeiro degrau, já vi a vi na frente, foi a primeira pessoa. Então ela é imponente. Ela tinha uma credencial pra ir mais atrás, deve ter falado que é brasileira, então ela tinha autoridade pra fazer isso e ela fez. Incrível.
Na ocasião, Minotauro sagrou-se campeão interino dos pesos-pesados ao finalizar Mirko Cro Cop, enquanto Wanderlei Silva bateu na mesma noite o japonês Hidehiko Yoshida, por decisão unânime, e Rampage Jackson, por nocaute, para conquistar o GP dos médios.
– Conhecia (Glória Maria) só através da televisão, mas quando ela chegou no Japão foi uma coisa muito engraçada. Ela falou: “Esse negócio de evento de luta e tal, não gosto, acho muito violento”. Na época não tinha tanto acesso. Era a primeira vez que a gente ia sair em rede nacional. A gente ficou junto a semana toda, ela entrevistando, e logo depois ela começou a vibrar no evento. Na primeira luta estava meio assim, depois começou a gritar: “Vai lá, isso e tal”. Uma mulher muito inteligente, perspicaz. Foi um imenso prazer ter conhecido ela e muito feliz por ela ter aberto pra gente esse caminho que foi dado no Fantástico pra gente poder mostrar o MMA – divertiu-se Wanderlei ao lembrar.
Ver essa foto no Instagram
Tanto Wanderlei, quanto Minotauro, fizeram questão de elogiar não apenas as qualidades da jornalista Glória Maria, que o público tanto se acostumou à assistir na telinha da Globo, mas exaltaram principalmente a pessoa.
– Antes de conhecer fazendo a matéria sobre nosso esporte, era um fã. Sempre fui um fã. Uma pessoa negra que quebrou barreiras na TV brasileira. Sei a história dela. Desde 1962 (na TV), foi a primeira mulher negra que apareceu na TV brasileira na grande rede. A gente ficava de cara com cada lugar que ela aparecia, respeitada em todo lugar que ia, tirava o melhor de todas as matérias, sabia contar a história da maneira certa. Convidei pra ir no UFC algumas vezes, ela esteve no UFC do Rio de Janeiro duas vezes, foi sensacional. Era iluminada, diferenciada, fez diferença na vida das pessoas. Onde chegava tinha uma luz própria, mostrou muita coisa pro mundo, pros brasileiros que não conseguem viajar. Fez matéria em mais de 100 países diferentes mostrando outras culturas. Uma pessoa negra, que conseguiu chegar onde chegou, quebrou barreiras, preconceitos, esse preconceito do nosso esporte existia e ela realmente sempre será lembrada por nós. Memorável. Meus sentimentos pra família e pra todos os repórteres, que devem ter sentido também. Vai estar nos nossos corações – destacou Minotauro.
– Era gente fina, educada, uma mulher muito inteligente, muito bonita, super em forma, magrinha, e uma querida. Nos tratou hiper bem. Foi muito legal ter tido esse contato com ela. Conheci só no Japão, passamos a semana toda, a gente ficou junto todos os dias e deu pra conhecer e ver que era uma mulher muito gente boa e muito querida. Meus pêsames pra família. Quando a conheci, ela parecia super em forma, magra, bonita, viçosa, realmente essa é a imagem que tenho dela e é a imagem que ela gostaria que todos guardassem dela, de uma mulher de sucesso, a frente do seu tempo e que nos deixa muitos ensinamentos. Agradeço a oportunidade de ter conhecido. Glória, vai com Deus, muito obrigado e espero que a gente consiga saber quem você foi e quão importante você foi pro jornalismo brasileiro. Foi um prazer te conhecer – concluiu Wanderlei.