‘Morro lutando’: quem é a prostituta confundida de propósito com Janja

No dia 31 de dezembro de 2022, Lucimara Costa, 33, pegou um ônibus saindo de Belo Horizonte rumo a Brasília para acompanhar a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Depois de 16 horas de viagem e com apenas R$ 100 no bolso, a mineira trocou a roupa por um conjunto de lingerie vermelha e levantou uma placa na Esplanada dos Ministérios, escrita à mão, com os dizeres: “Puta também é gente. Aprosmig presente. Lula presidente”.

Lucimara é trabalhadora sexual e viajou na caravana organizada pelo PT para, sozinha, representar a Aprosmig (Associação das Prostitutas de Minas Gerais). Durante o evento, tirou fotos com outros militantes, mas não por causa do cartaz que erguia, e sim por uma semelhança inusitada com outra mulher que estava presente, do outro lado da grade: a primeira-dama Janja Lula da Silva.

Ofensas contra a primeira-dama

Semanas depois da posse, já de volta a Ouro Preto (MG), o protesto de Lucimara voltou a chamar atenção, desta vez em perfis nas redes sociais e grupos bolsonaristas. Por causa de sua semelhança com a primeira-dama, grupos divulgaram uma montagem com uma foto de Costa ao lado de outra de Janja para “acusá-la” de ser prostituta.

A montagem foi complementada com a frase: “O Lula quis mostrar que o Brasil realmente é um grande puteiro. De militante à primeira dama, o Brasil virou um puteiro.”

Milhares de perfis no Twitter e no Instagram publicaram ofensas misóginas contra Janja e Costa. Em determinado momento, a foto chegou ao deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL), que comentou sobre a semelhança entre as duas. A montagem foi logo desmentida por sites de checagem — a própria Lucimara foi às redes dizer que era ela, e não Janja, na foto. “Só me xingaram o tempo todo. Me xingaram de tudo quanto é nome”, conta ao TAB.

Mesmo após os desmentidos, vez ou outra a mineira encontra a mesma imagem circulando na internet. Diz que, até o momento, não teve apoio das autoridades para denunciar as ofensas que recebeu nas redes sociais.

Por trás da montagem

Lucimara Costa é uma ativista pelos direitos das trabalhadoras sexuais em Ouro Preto (MG). Entre indas e vindas, ela trabalha na área desde os 18 anos. Nascida e criada na cidade, conta que saiu de casa cedo por “rebeldia” e foi morar na zona boêmia de Belo Horizonte.

“Já trabalhei em casa de R$ 30, já trabalhei em casa de R$ 200. Já trabalhei de dia, de noite, em quartinho. Na época, dava muito dinheiro e consegui ajudar minha mãe a sair do aluguel”, conta.

Em Belo Horizonte, frequentou os “sobe e desce” da Rua Guaicurus, zona de prostituição conhecida da capital mineira onde clientes buscam atendimento em pequenos hotéis. O “sobe a desce” é uma referência ao acesso aos quartos, grande parte por longas escadas onde homens e mulheres sobem e descem dia e noite.

Em paralelo, Lucimara fez curso na área da saúde, aprendeu inglês e hoje se divide em dois empregos: auxiliar de farmácia durante a semana e profissional do sexo aos sábados e domingos, atendendo clientes que chegam via anúncios em um site especializado.

Com a pandemia, o dinheiro diminuiu e ela passou a vender conteúdo pela internet e anunciar em sites de garotas de programa. Em 2020, Lucimara foi convidada a se candidatar a vereadora pelo PCdoB, depois de postar uma foto da carteirinha da Aprosmig. Ela não foi eleita, mas tomou gosto pela política.

‘Lutando por uma causa’ Desde as eleições, a política passou a protagonizar a vida da profissional do sexo. Participou de protestos pela vacina, contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e se dedicou mais ao ativismo, reivindicando melhores condições para trabalhadoras sexuais.

Mas o ativismo também trouxe problemas. A campanha para vereadora lhe rendeu apenas 85 votos, mas foi o suficiente para transformá-la em uma figura pública na cidade. Foi uma faca de dois gumes, já que a notoriedade e o posicionamento político espantaram grande parte da clientela. “Nenhuma mulher é assumida igual a mim”, afirma.

Costa quis ir à cerimônia de posse em Brasília para defender os direitos das trabalhadoras sexuais. O convite veio de Cida Vieira, presidente da Aprosmig, que pretendia ir com outras associadas na caravana gratuita oferecida pelo próprio PT.

Quando houve a ameaça de bomba na capital federal, no entanto, muitas desistiram da ideia — exceto Lucimara. “Decidi ir mesmo com medo. Já tinha decidido. Se for morrer, quero morrer lutando por uma causa. E uma puta vale por cem grupos políticos.”.

Moral de mão dupla É recorrente a disseminação de notícias falsas relacionando a primeira-dama com prostituição. Desde a vitória de Lula, em 30 de outubro de 2022, vídeos e montagens circulam no WhatsApp com teor machista e preconceituoso contra Janja — a maioria tentando relacioná-la a um passado “profano”.

“Quando [o caso] saiu na Lupa do UOL, vi muita gente dando ‘graças a Deus’ que foi desmentido”, afirma Carol Bonomi, pesquisadora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) na área de estudos de gênero. “Tem essa coisa de muita gente achar que ser prostituta é a pior coisa que existe nesse mundo, mantendo a ideia de que é um trabalho indigno e sujo. Porém, é um trabalho possível dentro dos empregos precários que sustentam milhões de mulheres no Brasil, e são a renda familiar de muita gente.”.

Para Bonomi, há um padrão na esquerda, de também tratar o trabalho sexual como algo desabonador às mulheres. Caso semelhante, diz ela, são os boatos de que Michelle Bolsonaro, a ex-primeira dama, teria trabalhado como prostituta em Brasília — apontados como uma “contradição” aos discursos conservadores defendidos por ela.

“As pessoas não repararam que, quando tratamos a prostituição de forma pejorativa, estamos não só desmerecendo a prostituta, mas a mulher como um todo. É também uma forma de desabonar mulheres como Lucimara Costa em espaços de disputa política”, alerta a pesquisadora.

Lucimara enxerga os comentários como hipocrisia. “Nós somos discriminadas por todos”, afirma. “A sociedade que nos condena é a mesma que nos alimenta.”

TAB entrou em contato com o gabinete da primeira-dama, mas não teve resposta até a publicação da reportagem.

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