Pequeno, isolado e com menos de um milhão de habitantes segundo os últimos números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), o Acre seria uma gota no oceano numa comparação grosseira em relação aos interesses estratégicos da China, uma superpotência econômica e populacional mundial em relação à América do Sul.
Mas não é bem assim, já que uma mega-ferrovia ligando os oceanos Atlântico, no Brasil, e Pacífico, no Peru, de interesse da China, passaria por dentro do território do Acre.
Estudiosos de relações estratégicas e bilaterais, como o economista Theotonio dos Santos, professor emérito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor visitante da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), diz que são fortes os interesses chineses no continente sul-americano e, em particular, sobre a importância da Ferrovia Transoceânica para o Brasil e para a China.
O Acre entra na configuração porque, para acessar os portos no litoral do Peru, a Ferrovia teria que passar por dentro do território acreano.
Theotonio dos Santos é especialista em países do BRICS (Banco cujos sócios são o Brasil, Índia, China e África do Sul), e tem como presidente a ex-presidente da República brasileira Dilma Rousseff, nomeada por Lula, e defende que um dos assuntos em pauta entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o presidente chinês Xi Jinping, no encontro previsto para ocorrer no próximo dia 14 de abril, em Pequim, terá a Ferrovia que passaria por dentro do Acre no centro dos debates.
É que, na perspectiva dos estudiosos em relações bilaterais, Lula e Xi Jinping vão falar, entre outras coisas, sobre a construção da ferrovia atravessando o Brasil e o Peru para ligar os oceanos Atlântico e Pacífico e assim facilitar as exportações de produtos sul-americanos para a China, financiadora do projeto.
Lula deveria ter se encontrado com Xi Jinping na última semana de março, mas contraiu pneumonia e o encontro teve que ser adiado e foi confirmado para o próximo dia 14, em Pequim.
No meio do caminho da ferrovia gigantesca, está o Acre, a última fronteira brasileira de acesso ao Oceano Pacífico, no litoral peruano. O acesso ao Peru a partir do Acre já tem uma estrada, a rodovia ligando o município de Assis Brasil aos portos de Ilo e Lima, no litoral peruano. Mas, se preferir, o governo chinês poderá financiar a Ferrovia pela região do Juruá, passando pela Serra do Divisor, cuja ligação, de pouco mais de cem quilômetros, é defendida pelo senador Márcio Bittar (União Basil-AC) e combatida a ferro e fogo por ambientalistas como o diretor-presidente da Apex-Brasil, um agência de exportação do governo brasileiro, Jorge Viana, e pela ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva.
Resta saber se os dois políticos acreanos teriam robustez suficiente para barrarem os interesses geopolíticos de uma superpotência como a China, que, não por acaso, vem a vem a ser também a maior parceira comrecial do Brasil.
A ferrovia faz parte de um plano de investimentos no valor de US$ 50 bilhões, para obras de infraestrutura da Ferrovia Transoceânica, ligando a costa brasileira, no Atlântico, à costa peruana, no Pacífico. Esse projeto, que data de 2008, mas ainda não saiu do papel, reduzirá significativamente os custos de importação para a China, sobretudo de grãos e outros produtos agrícolas brasileiros.
Além do Brasil, a China se comprometeu recentemente a investir pesado em toda a América Latina, missão para a qual já teria disponibilizado US$ 250 bilhões, a serem gastos nos próximos 10 anos.
A Bolívia, na fronteira com o Acre, é um desses países financiados, cujas ruas de Cobija, na fronteira com Epitaciolândia e Brasiléia, já tem suas ruas principais identificadas em três idiomas: inglês, espanhol e mandarim, o idioma chinês.
Em Brasília, na preparação do embarque de Lula e grande comitiva de empresários para a China, começaram as especulações entre graduados diplomatas brasileiros da ativa em relação a um segredo guardado a sete chaves na cúpula do Itamaraty e no Palácio do Planalto para ser anunciado, com pompa e circunstância, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estiver em Pequim com o líder chinês Xi Jinping.
Os diplomatas deixaram escapar que Lula assinará pelo menos um memorando de entendimento para a entrada do Brasil na chamada Nova Rota da Seda, também conhecida como “Belt and Road Initiative” (“Iniciativa do Cinturão e Rota”, na tradução livre do inglês).
Trata-se de um megaprojeto do governo da China que despeja cifras bilionárias em investimentos e projetos de infraestrutura pelo mundo afora e é um dos principais instrumentos da ofensiva chinesa para ampliar seu raio de influência no mundo e tentar fazer frente ao domínio dos Estados Unidos na geopolítica global.
A possível adesão do Brasil foi um dos principais pontos postos à mesa pelo governo chinês nas tratativas diplomáticas para chegar à versão final do comunicado oficial que sairá do encontro entre Lula e Xi Jinping, com uma síntese de todos os acordos acertados entre os dois governos. O documento está alinhavado desde antes de o presidente brasileiro cancelar a viagem à China por motivos de saúde. É possível que, com o adiamento da visita, ocorram alguns ajustes pontuais no texto, mas o que há de mais substancial já está definido.
A Nova Rota da Seda é um tema delicado porque tem potencial para melindrar a boa relação que o Brasil mantém com os Estados Unidos, mais ainda nestes tempos de acirrada polarização global que opõem China e Rússia a americanos e europeus — a guerra na Ucrânia, como se sabe, tem pintado com cores fortes as diferenças.
O contexto explica o secretismo em torno da adesão do Brasil ao megaprojeto. Justamente em razão da sensibilidade do assunto e de seus possíveis reflexos diplomáticos, as tratativas sobre esse tópico da agenda com a China têm sido limitadas à alta cúpula do Itamaraty e a um grupo restrito de assessores presidenciais.
A questão é, antes de tudo, política e está diretamente ligada à guinada na estratégia da diplomacia brasileira a partir da posse de Lula. Sob a orientação do ex-chanceler Celso Amorim, conselheiro do presidente para assuntos internacionais, o Brasil já sinalizou que pretende voltar a apostar no fortalecimento dos Brics, o bloco de países emergentes do qual faz parte junto com Rússia, Índia, China e África do Sul.
O bloco foi pensado para funcionar como um polo alternativo de poder no tabuleiro da política global, historicamente dominado pelas nações mais ricas do mundo. Lula quer apostar nessa frente. A recente indicação, pelo governo brasileiro, de Dilma Rousseff para chefiar o banco de desenvolvimento criado pelos Brics, com sede em Xangai, tem sido apresentada como um gesto nesse sentido — a escolha de uma ex-presidente do Brasil para o posto é um sinal da importância que o país quer dar ao grupo.
Dentro do Itamaraty, há setores que veem nessa orientação um movimento muito mais ideológico, movido por resquícios da histórica visão antiamericana da esquerda, do que propriamente pragmático. Essas mesmas alas reconhecem, porém, que o estreitamento da relação com a China pode ajudar o país a destravar a economia.
O discurso do governo brasileiro para justificar a possível adesão ao megaprojeto chinês nem precisa ser ensaiado: caso ela se confirme, Brasília dirá simplesmente que quer aprofundar, sem preconceitos, as relações com todos os países que possam ajudar a alavancar a atração de investimentos para o país.
A despeito dos sobressaltos dos últimos anos, quando Jair Bolsonaro, movido por razões ideológicas, disparou sua metralhadora verbal contra a China repetidas vezes e esfriou a relação entre Brasília e Pequim, o Brasil mantém laços estreitos com a potência asiática, de longe o maior cliente das exportações brasileiras.
Ainda que a relação já seja suficientemente forte, o possível ingresso do país na Nova Rota da Seda seria um movimento importante para a China. Pela relevância do Brasil na América Latina, valeria como um troféu para o governo de Xi Jinping. Neste ano, o megaprojeto completa dez anos e a adesão brasileira seria uma maneira de marcar o aniversário com um anúncio de peso.
A Nova Rota da Seda conta hoje com 140 países. Duas dezenas deles estão na América Latina. Ao assinar um memorando de entendimento no início do ano passado durante um encontro com Xi Jinping, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, anunciou a promessa dos chineses de destinar US$ 23 bilhões ao país para obras e projetos.
Pelo programa, empresas e bancos chineses financiam e constroem estradas, ferrovias, portos, usinas de energia e redes de telecomunicações. Um dos objetivos declarados, especialmente no front da infraestrutura, é facilitar a criação de novas rotas comerciais no mundo — de preferência, por óbvio, rotas que facilitem a logística do comércio com a China, seja por terra, seja pelo mar. Os americanos veem na iniciativa uma maneira de a China expandir sua influência e impor aos países associados não apenas suas tecnologias como também os serviços de suas empresas.
A se confirmar o ingresso do Brasil, o que provavelmente só se saberá ao certo quando Lula estiver na China, a tendência é que uma das prioridades seja tirar do papel o antigo plano de conectar, com estradas e linhas férreas, a costa brasileira e a costa do Pacífico — algo que, evidentemente, pelas facilidades que traria para o fluxo de mercadorias com a Ásia, muito interessaria aos chineses.
É neste sentido que o Acre, aparentemente fora de mão da geopolítica mundial, entra no contexto. Menos de uma semana separa as especulações da realidade, que deverá ser anunciada com a presença de Lula em Pequim.