É roubar. E quem nos ensina é o Caçador de Pipas, livro de Khaled Hosseini, best seller mundial, anos atrás.
Esta reflexão veio com a Semana Santa, cujo processo de ressurreição para uma nova vida acontece no dia a dia, na vida de muitas pessoas, com fé ou sem fé.
Se você mata, você rouba a vida de alguém. Se você estupra, você rouba o direito da mulher ao seu corpo. Se você difama e calunia, você rouba o direito do outro à sua honra e imagem. Se você mente, você rouba do outro o direito de saber a verdade. Se você explora, você rouba a força do trabalho e a saúde do mais fraco. Se você corrompe você rouba muitas vidas. Se você decide uma contenda a pedido do político ou de amigo influente você rouba o direito do outro à justiça. Se você rouba é porque você rouba mesmo.
A diferença do pecado, na religião, para o crime, na lei, é que nesta a gradação de pena varia de acordo com a gravidade do que se roubou. Naquela religião, é tudo igual. Absolvição pelo perdão.
Infelizmente, ser ladrão hoje é quase pré-requisito para o reconhecimento social e, talvez, até para se alcançar a presidência da República, além do que, para alguns, ao invés de ser crime e pecado, é uma benção e um passaporte para o sucesso pessoal.
Se você acha e sente que este pecado tem o perdão de Deus, se não vier acompanhado de uma atitude corajosa e mudança de comportamento, você está enganado.
Não adianta você pedir perdão a Deus diretamente, ao padre ou pastor, se você não devolver – de alguma forma – aquilo tudo que foi surrupiado do seu próximo, ou, do seu distante.
Isso pode até te aliviar momentaneamente, mas continuará te corroendo lá por dentro (se não corroer é porque já está podre mesmo), e de quando em vez voltará à tona, nem que seja no leito de morte, o mal que você fez a inocentes, ou, nem tanto inocente assim, mas que você praticou.
E assim, como quando era primata, pula de galho em galho das religiões, para buscar um conforto que não chega, sem saber que aquilo que de fato se busca e se necessita está dentro de você mesmo.
É como revela outro ultra best seller, O Alquimista, de Paulo Coelho, quando, após longa jornada, o pastor de ovelhas e caminhante Santiago descobre que o tesouro que tanto procurava e buscava longe estava dentro dele mesmo.
O perdão aqui é repor o que foi roubado. Só isso alivia. E só assim Deus perdoa. O amor de Deus é incondicional, mas o perdão, neste caso, é condicionado a um ato de coragem para justiçar aquele que foi ofendido pelo seu roubo.
Se você pretender quitar com Deus aquilo que você afanou do próximo não resolverá o problema. A religião não existe e nem serve para escamotear a verdade e justificar as injustiças. E nem para alienar as pessoas, já dizia um certo Karl Marx.
Se é assim que você pensa e age, seu destino certamente não estará lá em cima.
O ensinamento e a garantia de Nosso Senhor, em Mateus 18,22, em resposta à pergunta de Pedro, não é um salvo conduto para roubar continuamente, mas a exigência de um compromisso de se devolver aquilo que, material ou moralmente, foi usurpado de alguém, para, assim, merecer e sentir o perdão de Deus.
“Eu te digo, não só sete vezes, mas setenta vezes sete”, disse Jesus, o que, na numerologia bíblica, significa “sempre”, mas não que seja sempre roubar. É que o perdão de Deus é infinito, mas a sua conversão deve ser uma realidade.
“Eu roubei (pequei), Senhor”. “Vá, meu filho, e não peque (roube) mais”. “Eu pequei (roubei), Senhor”. “Vá, meu filho, e não peque mais”. “Eu roubei (pequei), Senhor”. Escuta, cidadão, o que você ainda não entendeu em “vá e não peque mais?”
Se você manipular as Sagradas Escrituras, para justificar que o roubar, em sentido amplo, é alcançado pelo perdão de Deus, creditado a todo momento, sem que você faça a viagem mais dolorosa, para dentro de você mesmo, e chegue ao entendimento de que o perdão exige um ato de justiça e reparação concreta, você nunca será uma pessoa livre, leve e feliz.
Afinal, todos os mandamentos se resumem a um só: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Assim, como você não rouba de você, deve devolver o que roubou do outro, para merecer o perdão de Deus.
Se é o caso de roubar e pedir perdão, roubar e pedir perdão, roubar e pedir perdão…sem um arrependimento eficaz e sem devolver nada, tudo não passará de mais um grande negócio, e a religião se transformará num biombo para a nossa miséria espiritual.
Se assim for, não recorra a Deus. Procure uma IA (Inteligência Artificial), para ficar repetindo que você está perdoado, sempre, até que o diabo o carregue.
Deus é misericordioso, mas, diferentemente da justiça humana, fica sempre do lado da vítima. Não esqueça.
Caçar pipas e andar com Santiago nos ensina muitas coisas.
Gilson Pescador é advogado e teólogo.