Falecido em Brasília há sete anos, em 5 de junho de 2016, aos 96 anos de idade, o acreano Jarbas Gonçalves Passarinho, nascido em Xapuri em 11 de janeiro de 1920, não foi apenas um militar e político que projetou o nome do Acre em nível nacional a partir do Estado do Pará, por onde foi governador e senador.
Na condição de senador constituinte, durante a Assembleia Nacional Constituinte, foi o principal redator do capítulo que trata dos Direitos Indígenas na Constituição Federal de 1988, inclusive com a demarcação de Terras que, agora, no ano em que a Carta Constitucional completa 35 anos de promulgação, está sendo questionada com a aprovação do que pode vir a ser um novo Marco Temporal.
Um possível novo Marco Temporal para a demarcação de Terras Indígenas será analisado na próxima quarta-feira (7), pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), após a Câmara dos Deputados aceitar a tese jurídica segundo a qual os povos indígenas têm direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. A tese surgiu em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, quando esse critério foi usado.
Em 2003, foi criada a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ, mas uma parte dela, ocupada pelos indígenas Xokleng e disputada por agricultores, passou a ser requerida pelo governo de Santa Catarina no STF.
O argumento é que essa área, de aproximadamente 80 mil m², não estava ocupada em 5 de outubro de 1988. Os Xokleng, por sua vez, argumentam que a terra estava desocupada na ocasião porque eles haviam sido expulsos de lá.
A decisão sobre o caso de Santa Catarina firmará o entendimento do STF para a validade ou não do Marco Temporal em todo o País, afetando mais de 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas que estão pendentes, inclusive no Acre.
Em 2021, o ministro do STF Nunes Marques votou a favor do marco temporal, no caso de Santa Catarina, afirmando que, sem esse prazo, haveria “expansão ilimitada” para áreas “já incorporadas ao mercado imobiliário” no país. O ministro avaliou ainda que, sem o marco temporal, a “soberania e independência nacional” estariam em risco.
Ele destacou que é preciso considerar o marco temporal em nome da segurança jurídica nacional. “Uma teoria que defenda os limites das terras a um processo permanente de recuperação de posse em razão de um esbulho ancestral naturalmente abre espaço para conflitos de toda a ordem, sem que haja horizonte de pacificação”, disse.
Marques citou que a Constituição deu prazo de cinco anos para que a União efetuasse a demarcação das terras. Para ele, essa norma demonstra a intenção de estabelecer um Marco Temporal preciso para definir as áreas indígenas.
O ministro também entende que a ampliação da terra indígena de Santa Catarina requerida pela Funai é indevida, por se sobrepor a uma área de proteção ambiental. O ministro Edson Fachin, que foi o relator do caso e o primeiro a votar, discorda de Nunes Marques. Para Fachin, o direito dos indígenas à terra é originário, anterior ao próprio Estado. Segundo o ministro, a proteção constitucional aos direitos originários sobre as terras que os indígenas tradicionalmente ocupam independe da existência de um marco temporal e da configuração de renitente esbulho.
Isso coincide com o que defendem representantes dos povos indígenas, os quais afirmam que o Marco Temporal ameaça a sobrevivência de muitas comunidades indígenas e de florestas. Afirmam também que trará o caos jurídico ao país e muitos conflitos em áreas já pacificadas, por provocar a revisão de reservas já demarcadas.
O ministro também afirmou que a Constituição reconhece que o direito dos povos indígenas sobre suas terras de ocupação tradicional é um direito originário, ou seja, anterior à própria formação do Estado.
Fachin salientou que o procedimento demarcatório realizado pelo Estado não cria as terras indígenas – ele apenas as reconhece, já que a demarcação é um ato meramente declaratório.
Militar, coronel do Exército e um dos ideólogos do movimento que derrubou o governo constitucional de João Goulart, em 1964 e instituiu uma ditadura no país que duraria até 1985, como político, Passarinho foi responsável pela assinatura do Formulário Ortográfico de 1943, uma reforma ortográfica anterior à de 1990.
Também foi governador do Estado do Pará, ministro do Trabalho, da Educação, da Previdência Social e da Justiça, além de presidente do Senado Federal. Mas foi como senador constituinte que Passarinho demonstrou que, embora fosse ideólogo da ditadura militar, na questão indígena ele estava ao lado de outro militar, o marechal Cândido Rondon, aliado da causa indígena.
Em 2019, uma reportagem do jornal espanhol “El País” publicou uma reportagem mostrando como o bispo de Altamira (PA), o austríaco Dom Erwin Kräutlerm, teria convencido o acreana Jarbas Passarinho a levar a questão indígena para a Assembleia Constituinte segundo os interesses dos indígenas e de seus aliados. O ano era 1987.
Dom Erwin presidia na época o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e montara um grupo estratégico com defensores da causa para estar no Congresso e fazer “uma espécie de lobby”. Durante esse processo contou com um aliado improvável: o então senador pelo Pará, Jarbas Passarinho, ministro durante a ditadura militar e um dos signatários do Ato Institucional de número cinco, que fez da repressão política um programa de governo. É dele a famosa frase “às favas todos os escrúpulos de consciência” durante a assinatura do AI-5.
Naquele ano de 1987, Passarinho ficou viúvo de sua esposa Ruth. E coube a dom Erwin rezar uma missa em sua memória e recordar sua atuação social, sobretudo a favor da infância. Dois dias depois, o senador e o bispo se encontraram em um voo rumo a Brasília. “Ele desatou o cinto, levantou, me abraçou e chorou, chorou amargamente. Disse que estava muito grato pela minha fala durante a missa”.
Ao aterrissar na capital, o bispo foi convencido pelos advogados do CIMI a telefonar para Passarinho, um dos principais articuladores do Congresso. Uma importante votação se aproximava, era questão de vida ou morte. “Telefonei por volta de 20h30 para seu gabinete e disse que tinha um assunto muito grave para tratar com ele sobre a questão indígena. ‘Venha, estou no gabinete, venha agora. O senhor é quem manda’, me disse. Bem político”, recorda.
Dom Erwin se dirigiu ao gabinete rezando para encontrar as palavras certas. E as encontrou. “O senhor nasceu no Acre e diz que sua placenta ficou enterrada no Acre. E hoje é senador pelo Pará. Acre e Pará são as duas colunas que sustentam a Amazônia e, por isso, o senhor vai ter a missão de defender os povos indígenas. Se o senhor não fizer isso, quem vai fazer?” O senador escutou atentamente as palavras do bispo e, em seguida, a dos advogados do CIMI.
Afinal se convenceu de que os modos de vida e o direito à terra dos brasileiros originários deveriam ser respeitados. “Dois dias depois fez um discurso inflamado no Congresso que convenceu. Eu nunca teria conseguido isso, mas ele tinha uma oratória… Meu Deus. Quando ele falou, a gente aplaudiu não só o conteúdo, mas a maneira como ele se expressou”. A votação final foi arrasadora: mais de 400 parlamentares constituintes se posicionaram a favor, alguns se abstiveram e apenas oito foram contrários. “Isso para mim foi um milagre. Se não tivéssemos tido a possibilidade de falar com esse homem…”, lembrou o religioso.