De Copa a cidade, como Arábia Saudita quer dominar esports

Com investimentos bilionários nos esportes eletrônicos, país quer diversificar economia, hoje dependente do petróleo, e melhorar imagem internacional

Príncipe da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, ao lado do presidente da FIFA, Gianni Infantino, durante anúncio da Copa do Mundo de esports — Foto: Saudi Press Agency/via REUTERS

Príncipe da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, ao lado do presidente da FIFA, Gianni Infantino, durante anúncio da Copa do Mundo de esports — Foto: Saudi Press Agency/via REUTERS

De uma cidade dedicada aos esportes eletrônicos a uma autointitulada Copa do Mundo, a Arábia Saudita tem planos megalomaníacos e bilionários para ser uma referência nos esports. O país, cujo governo é liderado pelo príncipe herdeiro Mohammad bin Salman e é acusado de violações de direitos humanos, usa os games competitivos, a exemplo do que faz nos esportes tradicionais, para diversificar a economia, hoje dependente do petróleo, exportar sua cultura e tentar melhorar a imagem internacional.

A Arábia Saudita estima investir US$ 38 bilhões (equivalentes a cerca de R$ 190 bilhões na cotação atual) no objetivo de se tornar o mais importante centro de games e esports do mundo até 2030, em uma indústria dominada por Estados Unidos, China, Japão e Coreia do Sul.

Os investimentos são realizados pela Savvy Gaming Group, uma empresa de games e esports integralmente bancada pelo PIF, fundo de investimentos soberano da Arábia Saudita, ligado à monarquia absolutista saudita.

O reino pretende ser casa de 250 empresas e estúdios de jogos e criar 39 mil empregos, fazendo com que o setor passe a contribuir com 1% do Produto Interno Bruto (PIB) saudita, dentro da meta de modernização e diversificação da economia.

Este plano prevê investimentos maciços em esportes como automobilismo, recebendo etapas da Fórmula 1 e futebol, inclusive com a contratação de astros do quilate de Cristiano Ronaldo, Karim Benzema e Neymar, o que tem levantado acusações de que a Arábia Saudita pratica o “sportswashing” – uso do esporte para “lavar” a imagem do país perante a comunidade internacional.

— Se o ‘sportswashing’ vai aumentar meu PIB em 1%, então continuaremos fazendo ‘sportswashing’ — rebateu bin Salman em entrevista ao canal norte-americano Fox News, em setembro passado.

— Quando você quer diversificar a economia, tem que trabalhar em todos os setores: mineração, infraestrutura, manufatura, transportes, logística, tudo isso. Parte disso é turismo e, se você quer desenvolvê-lo, parte disso é cultura. Parte disso é o seu setor esportivo — adicionou o príncipe herdeiro, que é aficionado por games.

Disputa de poder e percepção pública

De acordo com a professora associada do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Marislei Nishijima, os esports podem ser considerados instrumentos que viabilizam a formação de ‘soft power’, que consiste em um poder político de influência por meio de atração e/ou persuasão, sem força física bélica ou coerção, que seria o ‘hard power’.

— O ‘soft power’ tem a capacidade e a habilidade de moldar a opinião e percepção pública global sobre o agente emissor, promovendo seus valores, cultura, política externa e interesses, além de atrair e conquistar a simpatia e a admiração dos demais agentes internacionais. Para a Arábia Saudita, que é vista como um país autocrático e sem respeito a muitos valores caros aos países do Oeste democrático, investir em games/esports é uma estratégia benéfica porque melhora a sua imagem junto à comunidade internacional — detalha a especialista, lembrando que a indústria de games e esports tem o maior faturamento do setor de entretenimento e, portanto, traz alto retorno para os investimentos.

Para a professora, a Arábia Saudita busca competir com outros players importantes deste mercado, como Estados Unidos e China.

— Quando se trata de investimentos em bens que instrumentalizam o ‘soft power’ dos países tem-se implicações geopolíticas diretas. Estados Unidos e China se utilizam deste ‘soft power’ para impor seu poder. A Arábia Saudita, ao usar instrumentos semelhantes, fazendo investimentos nestas indústrias que alteram a imagem dos países, passa a competir diretamente com a dos grandes players neste mercado de influências.

Elcineia de Castro, doutoranda em Relações Internacionais e professora no curso de Relações Internacionais da Universidade Anhembi Morumbi, destaca que os investimentos nos esports estão inseridos em interesses “mais globais e ambiciosos” da Arábia Saudita. Eles são impulsionados pelo “certo desgaste e até afastamento dos Estados Unidos” no âmbito econômico, já que os sauditas têm firmado contratos em diversas áreas com a China, e pela agenda de desenvolver outros setores da economia.

— Nesta nova guinada na política externa da Arábia Saudita, o desenho de uma nova ordem mundial, mais inclinada para a Ásia (China) e menos pró Estados Unidos e União Europeia, está funcionando como o grande propulsor para um projeto de inserção internacional mais ousado e centrado nos interesses nacionais do país em não ser mais conhecido no sistema internacional pela Aramco [companhia petrolífera saudita] e OPEP [organização de países exportadores de petróleo].

Segundo a pesquisadora, a projeção institucional está inserida nesse contexto.

— O ‘sportswashing’ tem sido intensamente utilizado pelo Estado saudita, assim como os vizinhos no entorno geográfico, como o Catar, que já sediou uma Copa do Mundo. A grande mensagem talvez repouse na incansável tentativa dos estados do Golfo Pérsico de mostrar ao resto do mundo, especialmente o Ocidente, que não são apenas detentores de grandes reservas energéticas e que podem atuar não só no campo econômico e financeiro, mas também “circular” na atmosfera cultural tecnológica que está tomando proporções inimagináveis entre a população mundial.

Rodrigo Medina Zagni, chefe do departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ressalta que eventos esportivos internacionais “têm o potencial e a capacidade de projeção de atores estatais para um patamar de liderança intelectual e moral que faz parte de projetos autoconscientes das suas aspirações hegemônicas”.

— A capacidade de dominação costumeiramente executada por meio das estruturas econômicas e políticas é ampliada pela capacidade de liderança a partir das estruturas da cultura, na qual se insere a cultura desportiva — detalha o professor.

— A Arábia Saudita, que tem problemas com relação a violações de direitos humanos e perseguição a minorias e detém um regime com uma obediência religiosa formal, cujas morais são bastante restritivas, tende a distensionar essas contradições tentando projetar uma outra imagem de si, sobretudo regional e internacionalmente. É por meio da cultura desportiva que se pretende minimizar essas contradições.

O governo saudita é alvo de críticas por uma série de prisões, julgamentos, torturas e execuções de opositores, ativistas e jornalistas, inclusive em espaços públicos, e por proibições que limitam os direitos das mulheres no país. Além disso, a homossexualidade é considerada crime por lá, com pena de morte para quem pratica atos sexuais com uma pessoa do mesmo sexo.

Bin Salman é acusado, pela inteligência dos Estados Unidos, de ter mandado matar o jornalista Jamal Khashoggi, crítico ao regime, dentro da embaixada saudita em Istambul, na Turquia, em 2018. Ele nega.

Críticas à primeira ofensiva

Uma das primeiras ofensivas sauditas sobre os esports ocorreu em 2020, quando a Neom, uma cidade futurista erguida no deserto da Arábia Saudita, tornou-se patrocinadora da LEC, a liga europeia de League of Legends, e da BLAST, uma tradicional organizadora de campeonatos.

Fãs reagiram com indignação e casters da Riot Games detonaram a decisão, já que a LEC é reconhecida por apoiar a causa LGBTQIA+.

Diante dos protestos, a LEC e a BLAST recuaram e desistiram do patrocínio da Neom, cuja construção, orçada em US$ 500 bilhões (R$ 2,5 trilhões), é liderada pela Arábia Saudita.

Os recuos enfureceram o CEO da Neom, Nadhmi al-Nasr, que, em uma reunião de emergência, ameaçou atirar em funcionário, segundo uma reportagem do jornal norte-americano The Wall Street Journal publicada no ano passado.

Depois da tentativa frustrada como patrocinadora, a Arábia Saudita passou a criar os próprios projetos nos esports: comprou as organizadoras de eventos ESL e FACEIT, promoveu o Gamers8 com premiação milionária, lançou o projeto de construção de uma cidade, recebeu os campeonatos mundiais de FIFA e, mais recentemente, anunciou a criação de uma Copa do Mundo dos esports.

Compra da ESL e da FACEIT

Em janeiro de 2022, a Savvy comprou a ESL e a FACEIT por US$ 1,5 bilhão (R$ 8,2 bilhões) e as uniu em uma empresa, em uma transação concretizada em setembro.

A ESL é conhecida pelos campeonatos que organiza, principalmente de Counter-Strike, e a FACEIT é uma famosa plataforma de competições. Unidas, as empresas também são donas da marca DreamHack, já que, em 2020, ESL e DreamHack se fundiram.

Os CEOs da ESL FACEIT Group são Craig Levine, que era co-CEO da ESL Gaming, e Niccolo Maisto, cofundador e ex-CEO da FACEIT. Já Ralf Reichert, cofundador da ESL, virou presidente e integrante do conselho do ESL FACEIT Group.

Palco do Gamers8 em 2023 — Foto: Igor Bezborodov/Gamers8

Palco do Gamers8 em 2023 — Foto: Igor Bezborodov/Gamers8

Evento com premiação milionária

Embrião do que será a Copa do Mundo de esports e promovido pela Federação Saudita de Esports, o Gamers8 teve a primeira edição realizada em 2022.

Neste ano, na capital saudita de Riade, o evento ofereceu prêmios que totalizaram US$ 45 milhões (R$ 225 milhões) – a maior premiação da história dos esports.

Foram 15 campeonatos em 12 modalidades: Fortnite, Tekken 7, FIFA 23, PUBG, PUBG Mobile, Rainbow Six, DotA 2, R1, StarCraft 2, Street Fighter 6Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO) e Rocket League. Em quase todos eles, as premiações eram de, no mínimo, US$ 1 milhão (R$ 5 milhões) em cada. Foram US$ 15 milhões (R$ 75 milhões) só no DotA 2.

Em cinco modalidades houve jogadores ou times brasileiros na disputa, representantes de 11 clubes: FURIA, MIBR, Alpha7, w7m, Ninjas in Pyjamas (NIP), M80, Team Secret, SPQR, Ajax, DUX e Atlanta United.

Mundial de FIFA

O anúncio da realização do Mundial de FIFA, promovido pela entidade máxima do futebol, ocorreu dias depois de a Arábia Saudita desistir de se candidatar para ser sede da Copa do Mundo – do esporte real – de 2030. O país será sede do evento em 2034.

Jogadores e técnico da seleção brasileira de FIFA 23 com o troféu do FIFAe Nations Cup 2023 — Foto: FIFA

Jogadores e técnico da seleção brasileira de FIFA 23 com o troféu do FIFAe Nations Cup 2023 — Foto: FIFA

Copa do Mundo de esports

Como evolução do Gamers8, a Arábia Saudita lançou a Copa do Mundo de esports, com a primeira edição marcada para acontecer no verão de 2024, em um anúncio que contou com o príncipe em pessoa, ao lado do presidente da Fifa, Gianni Infantino, e de Cristiano Ronaldo, contratado do Al-Nassr e uma espécie de garoto-propaganda da guinada saudita no esporte.

O objetivo é fazer a Copa do Mundo anualmente, a ser organizada pela Esports World Cup Foundation, uma nova entidade sem fins lucrativos criada com o objetivo de impulsionar os esports. A promessa é de que o evento tenha a maior premiação da história dos games.

Os ex-jogadores de Counter-Strike Christopher “GeT_RiGhT” e Jarosław “pashaBiceps” e o caster Jacob “Pimp” fizeram posts no X (antigo Twitter) identificados como propaganda enaltecendo a realização do evento.

O streamer Alexandre “Gaules” e o narrador André “meligeni” também publicaram sobre a Copa do Mundo, embora nos posts deles não conste a hashtag que os identificam como propaganda.

Conferência de esportes

O anúncio da Copa do Mundo criada pelos sauditas ocorreu dentro do The New Global Sport Conference, um evento também organizado pela Arábia Saudita que, nos esports, contou com os principais nomes da indústria dos games.

Os cofundadores da FURIA André Akkari e Jaime Pádua, bem como o presidente-executivo do MIBR e CEO da plataforma Gamers Club, Yuri Uchiyama, participaram do evento em Riade.

Donos de outros clubes de esports, como Ninjas in Pyjamas (NIP) e G2 Esports, e executivos de empresas de games como Tencent, Ubisoft, Sony, Sega e Take-Two Interactive foram palestrantes.

Cidade de esports

A Arábia Saudita já anunciou a construção de uma cidade de esports, com investimento de US$ 500 milhões (R$ 2,5 bilhões) e inauguração prevista para 2024.

A cidade, localizada dentro de Riade, terá capacidade para até 20 mil espectadores e receberá uma variedade de eventos de esportes eletrônicos.

Clube saudita

Dentro deste contexto de ascensão da Arábia Saudita nos esports está está a equipe Team Falcons, criada pelo renomado jogador saudita de FIFA Musaad Aldossary.

Ele conquistou o título do campeonato mundial do FIFA eWorld Cup em 2018, ano em que criou a Falcons e venceu como melhor jogador de esports em console no Esports Awards.

A Falcons tem jogadores sauditas no FIFA, no Valorant, no Rocket League e no PUBG Mobile, mas latino-americanos no PUBG. No Counter-Strike 2 (CS2), a equipe almeja a montagem de um elenco estrelado, sob a liderança do treinador dinamarquês Danny “⁠zonic⁠”, pentacampeão mundial de CS:GO.

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