“O Maranhão me pariu, o Pará me criou e o Acre me adotou”, diz o advogado Ademar Galvão Pereira ao se referir às suas origens para contar como abandonou os vade-mécuns e compêndios de Direito para se dedicar, em tempo integral, à arte de tocar violão e cantar na boemia das noites acreanas, uma arte que ele exerce em Rio Branco há exatos 40 anos.
Aos 68 anos de idade, o advogado que virou artista é uma mistura de brasilidade de três estados marcantes do país por sua musicalidade, ritmos e características peculiares. O homem de três estados, que saiu do Pará, mas o Pará não saiu de dentro dele – ao ponto de todos os anos, como uma religião, levá-lo de volta a Belém para o Círio de Nazaré, tem mais tempo de Acre do que viveu entre o Maranhão e Pará. Veio aqui pela primeira vez em 1982 e, dois anos depois, em 1984, com o país vivendo a efervescência da agonia da ditadura militar que asfixiou o país por 25 anos, acabou voltando. E para ficar, literalmente.
Tornou-se um acreano de fato – daqueles que têm o orgulho de pendurarem os certificados dos títulos de cidadão na parede principal da casa.
No caso, o cidadão Ademar Galvão Pereira tem dois títulos, o de cidadão acreano, oferecido pelo deputado Edvaldo Magalhães (PCdoB), e o de cidadão de Rio Branco, oferecido pelo então vereador Eduardo Farias (PCdoB), ambos datados dos anos 90. “Eu tenho muito orgulho disso. Isso me faz sentir acolhido como ser humano”, diz o artista, que vive sozinho, morando há 30 anos no mesmo endereço, um apartamento localizado na rua principal do Conjunto Manuel Julião, em Rio Branco.
Ademar Galvão, embora tenha se mudado com mala e cuia (não seria violão?), como se diz, para o Acre, não se desgarrou de suas raízes e família paraenses. “Todos os anos, quando vou ao Círio de Nazaré, passo até um mês com meus familiares. Mas, mais que isso, já me deixa com saudades do Acre”, confessa.
Ademar Galvão não teve filhos e também nunca casou, embora tenha tido muitos relacionamentos. O mais duradouro dos relacionamentos estáveis, com a professora Suely Chaves, durou 15 anos. “Estável? Foi instável porque se fosse estável, não teria acabado”, ele corrige.
O próprio Ademar Galvão também corrige o redator quanto ao seu estado civil. “Vivo só, mas sou casado”, apressa-se em corrigir. “Com quem?”. E ele responde: “Com a música. É mais que um casamento, porque é ela que me sustenta, me dá prazer e alegrias. Não é um casamento?” indaga.
É, não deixa de ser. Mas, admite, no “casamento” com a música talvez ele não ganhe tanto quanto ganharia como advogado, profissão que exerceu no Acre por pelo menos cinco anos, em grandes escritórios como o do falecido advogado Luiz Sarava, e de João Tezza, já aposentado, os quais se notabilizaram no Acre como defensores de empresários do agronegócio, os chamados pecuaristas, ao ponto de, ambos, em legislaturas diferentes, chegarem a ser eleitos deputados estaduais. João Tezza foi, por exemplo, o relator da Assembleia Estadual Constituinte que elaborou a segunda Constituição do Estado do Acre, em 1989. Luiz Saraiva foi eleito em 1990. Ambos, embora gostassem de músicas e fossem considerados pessoas de boa praça, profissionalmente eram ligados aos latifundiários e fazendeiros que, à época, rivalizavam com o movimento de ambientalistas e seringueiros herdeiros das causas de Chico Mendes e que então se reuniam no bar e restaurante O Casarão, na Avenida Brasil, centro de Rio Branco. Mais que um bar ou restaurante, ali era um reduto ou gueto do pessoal de esquerda, onde o ainda advogado Ademar Galvão dedilhava seu violão aos finais de semana, muito mais por diletantismo do que por cachês. Por ali, costumavam desfilar personagens como Chico Mendes, a atriz Lucélia Santos, a professora magricela Marina Silva, que aparecia só para almoçar, já que não bebia ou gostava de boemia. Isso era coisa para petistas de outras esferas como os então imberbes Jorge Viana e Binho Marques, que tornar-se-iam governadores do Estado. Consta que até para o então Luiz Inácio Lula da Silva, que andava pelo Acre sem ainda sonhar em chegar à presidência, os dedos delicados de Ademar Galvão chegaram a tocar, com o intérprete saltando a voz rouca e inconfundível cantando o que ele hoje chama de MMPB – sigla para Melhor Música Popular Brasileira.
À medida que seu público, formado majoritariamente por militantes de partidos de esquerda – jornalistas, sindicalistas, professores, intelectuais – ia a cada dia aumentando, diminuía a frequência de Ademar Galvão aos escritórios de advocacia e os compêndios de Direito eram cada vez mais desprezados e substituídos pelas partituras da MMPB. Até que, antes do final dos anos 80, o artista venceu o advogado. Ademar Galvão, que, embora nunca tenha se engajado na política ou nos movimentos sociais de esquerda, já era artista demais para continuar ligado a advogados defensores do que combatiam seus admiradores em O Casarão. De tão boa praça, antes e depois de ter sido eleito deputado estadual, João Tezza chegou a ser visto acompanhando Ademar Galvão no palco, lá mesmo em O Casarão, tocando atabaque e outros instrumentos de percussão.
Luiz Saraiva, embora não frequentasse O Casarão, também era uma pessoa querida na sociedade. Mas, apesar disso, eram ligados a pecuaristas e defensores – como advogados – de empresários ligados à causa agrária. Pior que isso: era gente que cultuava o pecuarista Darli Alves da Silva, mandante confesso do assassinato de Chico Mendes, morto em 1988, por Darci Alves Pereira, filho do velho fazendeiro.
Se a judicatura nacional perdeu um advogado que, diziam especialistas, suas petições eram bem escritas e caprichadas e que discursava com vocabulário escorreito, a boemia e a noite acreana ganharam, a um só tempo, um violonista e um intérprete bem próximo da perfeição. Só em O Casarão ele tocou, de meados de 1980 até o fechamento e extinção do estabelecimento, às vésperas dos anos 2000. Nos últimos 20 anos, o ex-advogado transformado em artista em tempo integral toca no restaurante “Point do Pato”, localizado no Jardim Tropical, cuja cozinha é especializada, além do pato no tucupi, em pratos regionais, servidos com carne de jacaré e cobra, assim como de outros pratos não menos exóticos. Tudo ao som de Ademar Galvão, “este amigo de vocês, ao vivo e a cores”, como ele costuma dizer após também ingerir – porque a carne é fraca ou ninguém é de ferro – umas e outras.
Sobre isso, aliás, o artista diz que, com o passar dos anos, diminuiu a boemia própria, aquela que o fazia esticar até o amanhecer após suas apresentações onde cantava. “O tempo é implacável, mas acho que vou cantar até a hora derradeira e aqui mesmo no Acre. Não pretendo nunca mais sair daqui”, disse.
A relação de Ademar Galvão com o Acre deu-se em Belém ao travar conhecimento com os irmãos Nicomedes e João Correia Lia, que moravam na mesma rua que o então estudante de Direito. Ademar já tocava, como autodidata, guitarra e se aventurava no violão acompanhando o irmão mais velho, numa banda, quando travou contato com os irmãos Lima. “Fiquei amigo da família há mais de 50 anos. Foram eles que me trouxeram e aqui eu fiquei. Minha alma é acreana. Me encontrei”, disse.
O mais interessante é que, em quase quatro décadas, Ademar Galvão canta praticamente o mesmo repertório, as mesmas músicas. “Eu sou eclético, mas a música de qualidade, esta é atemporal. Não envelhece”, disse ao defender que, dentro do que ele chama de MMPB, há ainda os melhores. É o caso de Chico Buarque, poeta e compositor que é um de seus ídolos e do qual ele não tem uma música que entenda ser a melhor que qualquer outra. “Eu sou um chicólatra”, diz, ao criar um termo para quem é viciado em Chico Buarque, o mais acreano de todos os maranhenses e paraenses.