Autor de livro sobre Mestre Irineu fala sobre os efeitos do santo daime e o define como sagrado

Jairo Carioca revela que começou a tomar a bebida ainda no ventre de sua mãe

Lançado nesta quarta-feira (10), no Memorial dos Autonomistas, em Rio Branco, no Acre, o “Livro Vovô Irineu” conta a história do fundador da doutrina do Santo Daime, uma filosofia ou uma religião genuinamente brasileira fundada, no início do século passado, pelo maranhense Raimundo Irineu Serra.

Foto Juan Diaz: ContilNet

O livro tem como título a expressão “Vovô Irineu”, embora o autor, o jornalista Jairo Carioca, de 51 anos de idade, não tenha grau de parentesco algum com o lendário fundador do movimento filosófico ou religioso surgido no Acre e que se espalhou literalmente pelo mundo afora.

O autor falou ao Contilnet sobre sua obra. A seguir, os principais trechos de uma entrevista com Jairo Carioca:

Você é acreano? Nascido onde?

Jairo Carioca – Sim, sou acreano, nascido em Rio Branco, lá mesmo na comunidade do Alto Santo, fundado pelo Mestre Irineu. 

Você é neto do fundador da doutrina?

Jairo Carioca – Não, o título do livro, “Vovô Irineu”, era um tratamento dado a ele pels meus irmãos, que são mais velhos do que eu e que o conheceram em vida, com ele conviveram.e assim o chamavam. Ele faleceu em julho de 1971, eu nsci em maio de 1972.Mas os meus irmãos mais velhos tiveram uma relação tão próxima com ele que o chamavam de vovô e eu tirei dos relatos desta convivência o título do livro.

Vocês são quantos irmãos?

Jairo Carioca – Nós somos seis irmãos. Eu sou o mais novo.

O livro de fato conta o quê?

Jairo Carioca – Conta a história do Mestre Irineu desde a saída dele, em 1912, de São Vicente Ferrer, no Maranhão, até chegar ao Acre. Daqui de Rio Branco, ele vai para Xapuri, Brasiléia e entra no Peru.

Livro| Foto Juan Diaz: ContilNet

É verdade que Mestre Irineu teria descoberto a bebida do Santo Daime na região de Brasiléia, no Alto Acre? 

Jairo Carioca – Na verdade, a descoberta deu-se nas matas peruanas. 

Então o daime é de origem peruana?

Jairo Carioca – Na verdade, é de origem Inca, os primeiros habitantes do Peru antes da chegada dos espanhóis. A gente tem dois movimentos. O primeiro, que começa com a ocupação espanhola de destruição da cultura Inca. Esses Incas, certamente para sobreviverem, vêm para a Amazônia. OOutro movimento é o atual…

Os Incas desceram a Cordilheira para a planície amazônica?

Jairo Carioca – Há estudos que atestam isso. Na Amazônia, eles introduziram a bebida entre povos originários. Então o Mestre Irineu, séculos depois, andando pelo Peru, ele conhece um índio chamado Bisango, que o oferece a bebida. Na terceira vez que toma, ele recebe a missão, a miração com Nossa Senhora da Conceição, que se apresenta a ele através da Lua, e um ser chamado Clara, que ele cita como sendo a proteção espiritual dele. Então, recebe essa missão para espalhar a doutrina pelo mundo por amor sem jamais ganhar dinheiro com isso. A partir de 1912, ele fixou-se em 12 anos com experiências com os índígenas, aprendendo a cultura, quando aprendeu a falar Tupi-Guarani…

Tupi-Guarani entre índios daquela região?

Jairo Carioca – Sim. Além disso, ele aprende a lidar com plantas medicinais. Enfim, tem um aprendizado de 12 anos na região. Vem para Brasiléia e participa dos primeiros trabalhos do centro da Rainha da Floresta.

Não seria então pacífico dizer que a doutrina do Santo Daime no Acre foi fundada a partir de Brasiléia?

Jairo Carioca – Eu afirmou no estudo que o Mestre, como ser histórico, ele é predestinado. É o que se depreende dos primeiros hinos dele, inclusive em o Cruzeiro, ele fala dessa saída do Maranhão, da chegada ao Acre.

É fato que ele era um filho de pessoas escravizadas?

Jairo Carioca – Sim, os pais dele eram escravos. Ele afirma que é predestinado.  

Para escrever o livro, você levou quanto tempo de pesquisa?

Jairo Carioca – Olha, isso vem desde a época em que o Antônio Alves (jornalista e escritor, seguidor da doutrina) era presidente da Fundação Municipal de Cultura da Prefeitura de Rio Branco e chamou a mim e mais quatro seguidores da doutrina para fazermos um trabalho de história oral, que consistia em a gente entrevistar os seguidores mais antigos, aqueles que conviveram com o Mestre Irineu, que apertaram as mãos dele, que tomaram o daime dado por ele e que tiveram algum tipo de benefício de cura a partir dele, para procurarmos saber como havia sido a vivência de cada um. E cada um tinha uma história diferente, porque veio de uma região diferente. Entrevistamos muitos seguidores.

O livro então é um resumo dessas entrevistas?

Jairo Carioca – O que eu fiz foi o seguinte: peguei esse trabalho de história oral e primeiro transcrevi o que havia sido gravado. Depois, peguei todas essas informações e fui fazendo capítulos, estabelecendo períodos da constituição da doutrina. Então, eu digo que formatei a doutrina em três períodos: o primeiro, da chegada do mestre Irineu ao Acre de 1912 até 1945, quando ele vem para Rio Branco, fixa residência no que é hoje a Vila Ivonete e começa a codificar a ayuhasca. Ou seja, é a primeira ação dele na doutrina, quando batiza a Ayuasca para Daime.

A definição Ayuasca vem do espanhol ou é da língua indígena?

Jairo Carioca – É indígena  A partir de 1945, a Vila Ivonete passa a se tornar um centro urbano e é quando ele vai para o Alto da Santa Cruz, que hoje é o Alto Santo, hoje o Bairro Irineu Serra. Ali ele viveu de 1945 a 1971, quando morreu. Eu chamo que este é o momento mais sublime da doutrina, do cooperativismo e da fé

E como foi sua iniciação na doutrina?             

Jairo Carioca – Através dos meus pais, em 1958, quando conheceram o daime e, de lá para cá, já são quase 65 anos na doutrina. 

Seus pais são acreanos?

Jairo Carioca – Minha mãe é uma dessas nordestinas que migraram para cá. Ela veio de Natal, em 1944, junto com dona Vicência, aquela senhorinha que viveu e faleceu em Xapuri, onde era dona de uma pensão e vendia uma comida caseira saborosa. Vieram elas no mesmo navio. Meu pai era acreano. Filho de um homem conhecido por Vovô Carioca – aliás, não sei o que deu no vovô que ele pegou a primeira ageração da família e batizou com esse sobrenome. A segunda geração, que é a do meu pai, Júlio Chaves Carioca,  manteve o sobrenome.

E o livro tem quantas páginas?

Jairo Carioca – São 310 páginas. Mas eu diria que a principal característica deste livro é que é a primeira obra escrita por alguém que nasceu, creseu e se criou na doutrina.

Você lembra-se de quando tomou daime pela primeira vez ?    

Jairo Carioca – Não lembro, mas estou certo de que a primeira vez foi ainda no ventre da minha mãe. Mas voltando ao conteúdo do livro, o fato é que temos várias obras que dedicam duas, três e até quatro páginas ao Mestre Irineu como fundador da doutrna e daí passam a contar outras histórias. O meu livro é sobre o Mestre Irineu, são 310 páginas falando da história dele.

Mestre Irineu, como fundador da doutrina, já foi tema de várias publicações. Qual é a novidade que o senhor traz neste livro em relação ao que já foi publicado sobre ele? 

Jairo Carioca – É a linguagem. O trabalho de história oral permite que a gente devolva à história com suas próprias palavras. Esse livro fala do Mestre guiado pela Lua e as Estrelas de uma banda. É o Hino que ele tem. Ele fala do ouvir muito e falar pouco; ele fala da sessão de concentração, de cura, do hinário e do batismo, que são os rituais que o Mestre estabeleceu. O livro tem uma linguagem de quem convive com a doutrina. É a convivência com o mestre Irineu, as palestras que ele dava e os ensinamentos que ele deixou.

Você definiria este livro como? É um romance, uma reportagem ou um documento sobre o Daime e o Mestre Irineu?

Jair Carioca – O livro está classificado como romance e não deixa de ser porque é uma história de amor, amor à uma história divina, porque trabalha muito com a memória divina. E o que é isso? São os ensinamentos que o Mestre Irineu deixou para melhorar as nossas vidas. O que é o daime? Um dia desses um repórter me perguntou: o daime é um remédio? Eu respondo isso assim: o daime pode ser usado como remédio, sim, se você o buscar estando doente. Mas o daime é uma filosofia de vida. Quem toma daime cumpre um ritual. A cada 15 ou 30 dias tem que ter uma sessão de concentração; a cada mês tem o hinário e isso é uma coisa que você carrega para sua vida.

E a abstinência sexual por alguns períodos antes ou depois da ingestão do daime de fato faz parte deste ritual?

Jairo Carioca –  Trata-se de uma dieta. Sobre isso, um repórter outro dia comentou: quem toma daime às vezes passa mal, vomita. Sobre isso eu digo: depende da preparação para tomar a bebida. O daime é, para nós, um ser sagrado. Para você receber algo que é sacro, você tem que ter uma preparação física. 

Que passa então pela abestinência sexual?

Jairo Carioca – Sim, por três dias. Sexual e alcóolica. Três dias antes e três dias depois. São sete dias de dieta. 

De droga eu nem falo porque não é permitido sob hipótese alguma. Mas há quem faça essa mistura, não faz?

Jairo Carioca – Infelizmente, sim. Um dos objetivos do livro é exatamente resgatar o que o Mestre Irineu ensinou sobre isso; Está no estatuto e no decreto dele a proibição de associação do uso de qualquer tipo de droga com o daime. Infelizmente, quando a gente ouve falar do daime há notícia de algum seguidor com o porte de droga e há casos como a morte doGlauco (o cartunista foi assassinado há 13 anos por Carlos Eduardo Sundfeld Nunes, o qual invadiu o sítio onde morava o desenhista Glauco Villas Boas, em Osasco, São Paulo, a fim de sequestrar o cartunista. Armado com uma pistola Taurus 765 mm, o agressor afirmava que queria levar Glauco e a família até sua residência para que o desenhista confirmasse à mãe dele que Nunes era Jesus Cristo. De acordo com testemunhas, o artista tentou argumentar para ir sozinho com o invasor, mas houve discussão, e o criminoso fez dez disparos, atingindo o cartunista e seu filho, Raoni, de 25 anos) teve repercussão mundial. Muitas vezes a gente só ouve falar do daime por escândalos. Meu objetivo é criar um ambiente, até no Acre mesmo (porque mesmo aqui pouca gente conhece o daime em sua verdadeira essência).

Mas como você explica que alguns órgãos de segurança ainda classifiquem a bebida como alucinógeno? Você trata disso no livro?

Jairo Carioca – Trato sim. Primeiro, o daime hoje tem seu uso liberado pelo Governo Federal para o uso religioso, para o rito. Há mais de 20 dissertações que estudaram o daime. A Universidade do Rio Grande do Norte, por exemplo, tem um estudo em curso que procura buscar o que é que faz com que, quem toma daime, tenha visões, a chamada miração.

Não seria este o efeito alucinógeno?

Jairo Carioca – Não é porque, em miração, você está a todo instante consciente. Você não fica inconsciente – desde que seja dentro do trabalho ensinado pelo Mestre Irineu.

Você concorda então que é necessário mais estudo científico para se saber, realmente, o que leva a quem que toma essa bebida se tornar um ser humano próximo do transcendental?

Jairo Carioca – É claro que a bebida desperta hoje o interesse de antropólogos, historiadores, enfim, do mundo acadêmico. Para nós, que vivenciamos e temos essa rotina, já temos o conhecimento necessário.

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