O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) quer proibir as câmaras municipais do estado de usarem a frase “reunidos sob a proteção de Deus” e outros costumes religiosos. Para o MP-SP, as condutas que se referem a Deus ou a leitura da Bíblia são inconstitucionais e ferem a laicidade do Estado. Ainda segundo eles, esses costumes são voltados apenas aos cristãos e excluem outras crenças como as professadas por judeus e muçulmanos. Os municípios de Araçatuba, São Carlos, Engenheiro Coelho e Itapecerica da Serra já foram alvos de ações do MP-SP.
A cidade de São José do Rio Preto está agora na mira do órgão. Na petição apresentada contra a Câmara de Vereadores da cidade, o MP-SP aponta como inconstitucional a frase “reunidos sob a proteção de Deus” antes do começo das sessões legislativas. O documento alega que o Estado deve ter absoluta neutralidade e não adotar “posturas em benefício ou em detrimento das diversas igrejas ou religiões”.
Na ação contra São José do Rio Preto, o MP-SP se apoia, inclusive, em decisões anteriores iniciadas pelo próprio órgão e julgadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Nos documentos, é citado, por exemplo, o entendimento do TJ-SP que considerou inconstitucionais a invocação do nome de Deus e a leitura de trecho da Bíblia anteriormente adotadas pela Câmara Municipal de Itapecerica da Serra.
Na decisão contra Itapecerica da Serra, o TJ valida o argumento apresentado por Mário Luiz Sarrubbo, procurador-geral de Justiça de São Paulo, na petição inicial. Naquela ação, Sarrubbo apontou que, para ele, “não compete ao Poder Legislativo municipal criar preferência por determinada religião – como o faz pela instituição da leitura de um versículo de um dos Livros da Bíblia Sagrada e a invocação da proteção de Deus sobre os trabalhos”. O procurador-geral ainda acrescentou que as ações seriam voltadas “exclusivamente aos cristãos”, o que, para ele, fere a laicidade do Estado brasileiro.
Para especialista, há confusão entre os conceitos de laicismo e laicidade
“Essa ação é absurda sob os diversos ângulos da confusão que se faz entre laicidade e laicismo. O Brasil, pela sua Constituição, é um país laico e não laicista. Não rejeita as religiões e nem a elas é indiferente”, afirma o advogado Igor Costa, mestre em Direito Constitucional.
A laicidade prevista na Constituição, de acordo com Costa, coloca o Estado em uma posição de neutralidade em relação às religiões, o que leva ao respeito a todos os tipos crença e linhas de pensamento, sem proibir a manifestação pública de qualquer uma delas. O laicismo, por outro lado, combate a profissão pública de qualquer crença, seja ela qual for, o que fere o direito constitucional à liberdade religiosa.
No caso do Brasil, como a maioria da população é cristã ou temente a Deus, é natural o uso de símbolos religiosos ou frases de textos considerados sagrados. “A tentativa de retirar as expressões religiosas e a religião do espaço público é igualmente laicismo e, portanto, inconstitucional”, afirma.
A Câmara Municipal de São José do Rio Preto, que pediu pelo arquivamento da ação, apresentou argumentos que também apontam a diferença entre laicismo e laicidade. O documento do município leva em consideração a relação entre a religião e a cultura brasileira. “Não há como negar – vale o exemplo -, a esse respeito, a marcante contribuição do catolicismo para a formação espiritual, moral e cultural do povo brasileiro. Símbolos dessa ordem, prossegue Peter Häberle, que dizem frequentemente mais sobre o espírito de um povo do que algumas normas jurídicas”, cita o documento.
Segundo uma pesquisa do Datafolha de 2020, 81% dos brasileiros são cristãos, sendo 50% católicos e 31% evangélicos. O dado favorece o uso de expressões e símbolos cristãos pelos brasileiros, inclusive em instituições públicas. Os símbolos fazem parte da identidade da própria população e da tradição do país.
Expressão é semelhante ao preâmbulo da própria Constituição Federal
Para Costa, o Estado deve aceitar a pluralidade de religiões, inclusive proteger as religiões minoritárias. Ao mesmo tempo, é natural que a religião majoritariamente adotada pela sociedade receba destaque na vida pública. “A perseguição à religião é laicismo e não laicidade. A maioria da Casa Legislativa local, que expressa a vontade do povo, optou pelo uso da expressão religiosa. Isso em nada viola o direito dos não religiosos ou dos de religiões diversas”, detalha.
A defesa do Legislativo de São José do Rio Preto ainda argumenta que a expressão de invocação ao nome de Deus adotada é genérica, o que abarca todas as religiões, e possui o objetivo de homenagear os aspectos culturais, sociais e religiosos que formam o Estado Brasileiro. Como fazem as expressões semelhantes adotadas pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, Câmara dos Deputados e Senado Federal e também o próprio preâmbulo da Constituição Federal. Além disso, para a Câmara Municipal está claro que a questão não possui relevância jurídica, pois não impede a participação de qualquer cidadão nas questões políticas municipais.
“Se essa norma for considera interna corporis não deve haver uma intervenção indevida de outro poder”, afirma Igor Costa. O advogado considera que, além dos problemas conceituais, é preciso verificar se cabe ou não uma interferência do Judiciário sobre o Poder Legislativo municipal. Segundo ele, o Supremo Tribunal Federal já definiu que a Justiça não deve ter controle de constitucionalidade de normas internas de casas legislativas, justamente para proteger a separação de poderes.
A Gazeta do Povo procurou o MP-SP, que confirmou a postura adotada no caso, por nota, apoiando-se em decisões do TJ. “O MPSP informa que a obrigatoriedade prevista em Regimentos dos Legislativos municipais de se recorrer a expressões de cunho religioso para abrir as sessões contraria o princípio da laicidade do Estado, inscrito na Constituição, conforme atestam as reiteradas decisões do Órgão Especial do Tribunal de Justiça nesse sentido. O Ministério Público não se opõe, evidentemente, a que cada parlamentar, em virtude de suas convicções pessoais, faça menções desta natureza.”
Procurada, a Câmara Municipal de São José do Rio Preto preferiu não comentar o caso.