A combinação entre desmatamento e mudança climática pode reconfigurar radicalmente o mapa da Amazônia em 2050, informa o Observatório do Clima (rede de 37 entidades da sociedade civil brasileira formada com o objetivo de discutir as mudanças climáticas no contexto do nosso país).
Um estudo publicado em 24 de junho no periódico “Nature Climate Change” por pesquisadores do Brasil e da Holanda indica que esses dois fatores podem cortar a maior floresta tropical do mundo ao meio, com uma imensa porção a sudeste reduzida a fragmentos. A riqueza total de espécies de árvore pode cair 58%, com quase metade delas sob algum grau de ameaça de extinção.
O resultado sinistro vem de uma análise da distribuição atual de mais de 10 mil espécies arbóreas, cruzada com modelos de projeção de desmatamento e com dois cenários dos modelos climáticos do IPCC, o painel do clima da ONU.
O grupo liderado pelo cientista ambiental Vítor Gomes, da Universidade Federal do Pará, mostrou que, embora seja hoje a maior causa da perda de habitat na Amazônia, nas próximas décadas o desmatamento deverá ser suplantado pela crise do clima. No meio deste século, motosserras e tratores poderão acarretar perdas de 19% (no melhor cenário) a 36% (no pior) na riqueza de espécies da Amazônia, enquanto a mudança climática causaria reduções de 31% a 37%. “O resultado nos surpreendeu”, disse Gomes ao Observatório do Clima.
Ação generalizada
A explicação para isso reside na ubiquidade do clima. “O desmatamento está concentrado em determinadas faixas e seu impacto no oeste e no norte da Amazônia é menor”, afirmou o cientista. “O clima, por outro lado, age em toda a floresta, alterando a precipitação e a temperatura.”
Quando isso acontece, a área de distribuição ideal de uma espécie muda. Em geral, as criaturas impactadas pelo clima migram em busca de locais mais adequados. No caso da Amazônia, os climas mais adequados daqui a 35 ou 40 anos poderão estar a mais de 300 km das zonas de distribuição atuais das espécies.
O problema é que árvores são lentas para migrar. “A gente sempre brinca que elas não vão subir num ônibus e dizer, ‘tchau, pessoal, vamos para um lugar melhor’”, diz Gomes. Durante os períodos secos do Holoceno (período geológico iniciado 12 mil anos atrás), comunidades de árvores da Amazônia também precisaram migrar. Isso ocorreu a uma taxa de menos de 100 quilômetros em 3 mil anos. Ou seja, a perspectiva de deslocamento de 300 quilômetros em 35 ou 40 anos simplesmente não existe.
Já hoje o desmatamento vem causando impactos graves na diversidade de espécies. Estima-se que a Pan-Amazônia (ou seja, o bioma em todos os seus nove países) já tenha perdido 11% de sua cobertura. Isso causou uma redução de 7% no habitat das espécies. Para 2050, a projeção com políticas de controle de desmatamento mostra 21% de perda da floresta (e 19% na diversidade); sem controle, isso vai a 40% (e 36% de perda de diversidade).
Perda inevitável
Para a mudança climática foram considerados dois cenários: o melhor, o qual o Acordo de Paris é cumprido e o mundo esquenta menos de 2 °C, causa uma perda de 31% na diversidade de espécies na Amazônia; no pior, no qual não se faz nada, esse número sobe para 37%.
Quando se somam os dois efeitos, a Amazônia literalmente quebra. Uma linha diagonal de nordeste a sudoeste passa a dividir o bioma a partir do leste do Amapá. Os maiores remanescentes de floresta permanecerão na porção noroeste (em verde no mapa). Toda a metade sudeste consistirá de matas altamente fragmentadas, e o que sobrar estará praticamente confinado a áreas protegidas e terras indígenas. No pior cenário de desmatamento somado com o pior cenário de mudança do clima, a riqueza de espécies declinaria 65% e 22% delas estariam criticamente ameaçadas de extinção.
Ima Vieira, pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi e coautora do estudo, afirma que a situação pode ser ainda pior: o trabalho, afinal, não considera os potenciais efeitos do projeto de lei do Senado 2362/2019, de autoria de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da república.
Piorar o que já está ruim
O texto propõe simplesmente o fim da reserva legal nas propriedades rurais, o que autorizaria o desmatamento de 89 milhões de hectares na Amazônia. “O valor é 30 vezes maior do que prevê o pior cenário de desmatamento usado neste estudo”, afirma. “Se já ficamos assustados com os resultados dessa pesquisa, imaginem o que pode vir pela frente com esse nível de retrocesso ambiental?”
Para evitar um desastre maior do que o que o estudo já aponta, afirma a cientista, “a rede de proteção da floresta amazônica deve sempre considerar as áreas protegidas e as reservas legais, que são complementares na proteção da biodiversidade”.
As áreas protegidas, vale lembrar, também estão sob cerco, com o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles (Novo-SP), propondo a revisão de 334 unidades de conservação federais e considerando reduzir 67 delas alegadamente a pedido do Ministério da Infraestrutura.