O norueguês Per (que todos chamavam de Peter) Tangvald nunca foi uma pessoa convencional.
Muito menos um velejador dentro dos padrões habituais.
Quando comprava um barco, por exemplo, a primeira coisa que fazia era retirar o motor e jogá-lo fora, porque dizia que motores acabavam com o romantismo dos veleiros – além de ocuparem espaço, serem barulhentos e extremamente fedorentos.
Também substituía o banheiro por um simples balde, porque pregava que ninguém deveria ter a bordo algo que não pudesse consertar com facilidade – e privadas eram uma permanente fonte de problemas para ele.
Para Peter Tangvald, não fazia sentido ter em um veleiro nada além do que os antigos barcos a vela possuíam no passado – nem motor, nem baterias, eletricidade, muito menos qualquer coisa que lembrasse vagamente tecnologia.
Ele navegava apenas com um sextante, guiava-se pelas estrelas e não dava a mínima bola para conforto – embora fosse filho de um rico empresário.
Era um velejador purista e um aventureiro nato. E, também, um mulherengo incorrigível.
Ao longo de sua vida, quase toda passada no mar (entre outras façanhas, deu duas voltas ao mundo navegando com barcos que não tinham nada além do básico), Peter teve incontáveis companheiras e casou-se nada menos que sete vezes – e, de certa forma, também levou quase todas as suas esposas para o mar, o que, inclusive, explicava o por que de tantos casamentos.
Com duas delas, Peter teve filhos, nascidos e criados a bordo do barco no qual moravam.
Mas, tragicamente, perdeu ambas em acidentes no mar, tornando-se assim, também, duplamente viúvo e responsável por criar, sozinho, os dois filhos: Thomas, nascido em 1976, e Carmen, oito anos e um novo casamento depois.
A paixão de Peter por barcos extremamente básicos só não era maior do que pelas mulheres.
Na primeira vez em que buscou companhia para navegar, após se separar de sua primeira esposa (a única que ele não conseguiu convencer a viver no mar, e que, por isso mesmo, logo virou “ex”), o norueguês deixou claro que teria que ser uma mulher, sem esconder suas segundas intenções.
“Se eu estivesse satisfeito em dormir sozinho no barco, teria procurado um homem como tripulante”, explicava às eventuais candidatas, com uma desconcertante franqueza machista.
E uma delas aceitou.
Mas não por muito tempo.
Não demorou muito e Lillemor, segunda esposa do velejador, abandonou o barco no início de uma viagem de volta ao mundo, quando ainda estavam no Caribe, após antever a precariedade da vida que levariam dali em diante.
Peter não se importou com a decisão da esposa e, ali mesmo, na Ilha de Santa Lucia, conheceu Bjula, uma magnetisante filha de uma feiticeira local, que impôs apenas uma condição para seguir viagem com ele: que Peter jamais removesse uma pequena argola que ela mesma, com uma agulha enferrujada, enfiou em sua orelha, feito brincos de um pirata – e que ele manteve até o fim da vida.
Já a união dos dois durou quase nada.
E nem chegaram a partir juntos, para realizar o sonho de Peter de dar a volta ao mundo.
Mas, Peter logo conheceu outra mulher: a francesa Simonne, uma professora que dava aulas na Martinica.
Apaixonada pelo norueguês, ela se licenciou do trabalho e seguiu com ele para o Taití, onde chegaram meses depois.
Simonne, no entanto, precisou retornar à Martinica, para mais um período na escola, deixando Peter sozinho na tentadoramente romântica Polinésia Francesa.
Foi o bastante para ele engatar um longo romance com uma nativa, e Simonne logo ficou sabendo.
Era o fim de mais um casamento.
Mas Peter não ficou solteiro por muito tempo.
Em seguida, outra francesa, Lydia, entrou na sua vida errante no mar.
Só que, desta vez, com consequências trágicas.
Três anos após dar a luz, em pleno oceano, ao primeiro filho de Peter, um menino chamado Thomas, Lydia foi assassinada, também no mar, por piratas filipinos, que tentaram assaltar o barco da família.
Peter só sobreviveu porque os bandidos, aparentemente, se sensibilizaram com a presença da criança a bordo e decidiram poupá-lo.
Mesmo assim, o norueguês foi recebido com certa desconfiança pela Polícia, ao retornar para terra firme sem a esposa a bordo.
Suspeitas (ou fantasmas da má sorte) voltariam a rondar Peter Tangvald no seu casamento seguinte, com a taiwanesa Ann, com quem ele teve seu segundo filho: a menina Carmen.
Durante uma travessia do Atlântico, Ann foi atingida pela retranca da vela do barco, caiu no mar e jamais foi encontrada.
A morte de mais uma esposa em circunstâncias difíceis de comprovar – e sob o eterno silêncio do mar – renderam a Peter um apelido nada lisonjeiro: Barba Negra dos Mares, embora ele fosse loiro feito um viking e nem de longe um assassino.
Ao contrário, o norueguês era pacífico feito um monge budista e um pai tão dedicado que decidiu criar, sozinho, no barco, os dois filhos – cada um de um casamento diferente, mas órfãos das respectivas mães, ambas mortas no mar.
Durante um par de anos, entre um namorico e outro, Peter fez longas navegações com suas duas crianças, chamando a atenção por onde passava tanto pela simplicidade dos seus barcos quanto pela curiosa tripulação infantil.
Isso atraiu a atenção também de Florence, uma canadense com quem Peter – adivinhe só! – se casou novamente, e com quem teve seu terceiro filho: outra menina, chamada Virgínia.
Mas ela pouco conviveu com os meios-irmãos no barco-casa da família, porque Florence, temendo ter o mesmo destino das duas esposas de Peter que a antecederam, não demorou e mudou de ideia sobre viver em um veleiro.
Ela, então, decidiu desembarcar – do barco e do casamento –, e foi viver no Canadá, com a filha.
Já Peter seguiu navegando com os outros dois filhos.
E foi quando o pior aconteceu.
Em 22 de julho de 1991, ao se aproximar da Ilha de Bonaire, no Caribe, o barco do norueguês, então um veleiro de dois mastros batizado L’Artemis de Pytheas, que ele mesmo construíra sob os mesmos princípios da extrema rusticidade, atropelou um recife de coral, possivelmente pela falta de um motor que permitisse mudar de direção a tempo, e afundou na hora, matando tanto o velejador, então com 66 anos de idade, quanto sua filha Carmen, de apenas sete.
O outro filho de Peter, Thomas, então com 15 anos de idade, nada sofreu, porque não estava a bordo no momento da colisão, e sim seguindo o pai, com um barquinho.
Thomas escapou com vida do avidente.
Mas viu o pai e a irmã também morrerem no mar, bem diante dele, tal qual já havia acontecido com sua mãe e uma de suas madrastas.
Era mais uma tragédia na família.
E isso, mais tarde, se repetiria com ele próprio.
Thomas Tangvald conseguiu a proeza de levar uma vida ainda menos convencional que a do pai.
A começar pelo fato de que nasceu no mar – literalmente.
Quando ele veio à luz, Peter e sua mãe, Lydia, navegavam no Estreito de Malaca, na costa da Malásia, e não deu tempo de buscar um local para o parto.
O nascimento aconteceu no próprio barco, com Peter se desdobrando entre a pilotagem do veleiro e o auxílio a parturiente.
Mas deu certo.
Problemas mesmo só surgiram semanas depois, quando o casal, agora acrescido de um novo tripulante, finalmente parou em um porto, no Sultanato de Brunei.
Temendo problemas legais, já que a criança ainda não tinha documento algum, Peter e Lydia esconderam o bebê, enquanto recebiam a bordo os agentes da imigração, a quem haviam declarado serem os únicos ocupantes do barco – até que Thomas começou a chorar na cabine.
A travessura rendeu uma ameaça de prisão ao casal, por mentir aos oficiais.
Mas acabou sendo relevada, graças ao próprio bebê, que não poderia ser levado para a prisão, muito menos ser mandado embora, sozinho no barco.
Rapidamente, Thomas mostrou ser um marinheiro nato – e ainda mais purista do que seu pai na arte de navegar.
Só dormia na cabine de proa, onde todos os barcos balançam bem mais, e, ainda criança, aprendeu os princípios da navegação estelar, guiando-se no mar apenas pelos astros e estrelas no céu.
Só de vez em quando ia para alguma escola, nas escalas temporárias que o pai fazia, aqui e ali.
Frequentou nada menos que 15 delas, nos seus primeiros anos de vida.
Mesmo assim, quando Peter morreu e Thomas foi viver temporariamente com um casal de amigos de seus pais, na Inglaterra, formou-se com facilidade tanto em matemática quanto na complexa área dos fluídos dinâmicos, tema que particularmente lhe interessava, por causa dos barcos.
E tão logo se formou, construiu ele próprio um pequeno veleiro – sem motor, obviamente – e com ele atravessou, sozinho e sem nenhum equipamento de navegação, o Atlântico.
Tinha, então, apenas 22 anos de idade.
Em Porto Rico, onde fincou âncora por algum tempo, Thomas (que, tal qual o pai, era um apaixonado por primitivas embarcações regionais) comprou um velho casco de madeira e decidiu transformá-lo na sua nova casa.
Construiu uma acanhada cabine, batizou o barco de “Oasis”, e foi viver nele, com sua jovem esposa, que conhecera lá mesmo, e um filho recém-nascido.
Mais tarde, ao se interessar pelas embarcações usadas pelos pescadores no Nordeste brasileiro, decidiu que se mudaria para o Brasil.
Em março de 2014, Thomas embarcou no Oasis com a mulher, já novamente grávida, e o filho pequeno, e navegou até a Guiana Francesa, de onde partiu, desta vez sozinho, rumo à ilha de Fernando de Noronha, onde pretendia se estabelecer com a família.
O objetivo da viagem era conhecer a ilha e voltar para buscar a mulher e o filho.
Mas Thomas não chegou à Fernando de Noronha.
Em algum ponto entre a Guiana Francesa e a costa brasileira, ele desapareceu, juntamente com o seu barco.
Tal qual seu pai e sua mãe, Thomas também morreu no mar, mas em circunstâncias ainda mais dramáticas, porque nenhum vestígio, nem dele nem do barco, foi encontrado.
No blog que ele mantinha na Internet, seu último post foi sobre a engenhosidade dos saveiros da Bahia, que ele sonhava conhecer de perto.
Não deu tempo.
A peculiar vida de Thomas Tangvald no mar terminou como a do seu pai: com mais uma tragédia, a bordo de um barco pra lá de rústico.