“Sem dúvida um bom coração. E quando um bom homem se vai, o mundo regride”. A frase, dita nesta manhã triste de sexta-feira (18), pelo poeta, escritor, filósofo e jornalista Antônio Stélio de Castro, numa telefonema disparado de Natal, no Rio Grande do Norte, onde ele vive desde que se aposentou, foi sobre Marcos Vicentti, o “Marcão”, o repórter fotográfico acreano de reconhecimento internacional que ora sai da vida para entrar para a história, na rica história do jornalismo regional.
“O Marcão foi uma de minhas crias nos bons tempos do jornalismo acreano. Tinha muito orgulho dele, tanto como profissional talentoso, quanto cidadão ético”, acrescentou Stélio. “Marcão começou sua trajetória profissional comigo, no Página 20, onde foi motorista, entregador de jornal, sempre diligente. Mas foi como fotógrafo que seu talento sensibilidade despontaram. É uma perda que me dói por dentro. Não é por outra coisa que sinto que os mestres espirituais o receberão com alegria e conforto”, disse o ex-patrão.
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O outro, Elson Dantas Dias Filho, sócio de Stélio na fundação do Página, conta que o jornal 20 foi fundado a cinco de março de 1995, auge dos governos Orleir Cameli (estadual) e de Fernando Henrique Cardoso na presidência da República. Na época, poderia faltar tudo: menos notícias. E era preciso alguém que as soubesse contar, ainda que, no caso de “Marcão”, a linguagem fosse outra que não a palavra. Ele era mestre na arte da fotografia.
Mas essa história começou meio que acidentalmente. O Página 20 foi fundado por necessidade de um veículo combativo na imprensa para se contrapor à imprensa de caráter oficialesco que então se praticava de Norte a Sul de um país sem, ainda, as redes sociais que vieram para, se não botar ordem nas coisas, pelo menos não deixar que só a versão oficial prevaleça. Ainda que, aqui e ali, se crie o que se convencionou chamar de “fake news”.
Fundado muito mais pelos arroubos de jovens incomodados com o servilismo do jornalismo local, portanto, o Pagina 20 nasceu, para se dizer o mínimo sobre o que era aquilo, sem planejamento. E na falta disso, aos domingos, dia em que o jornal então semanário deveria circular, ficava encalhado na oficina da gráfica pela prosaica razão de que, na fundação da empresa, os proprietários da empresa não se deram conta de que, para circular, o jornal impresso precisaria de um entregador. E de um carro. A empresa não tinha nenhum dos dois.
Um dos diretores administrativos, Júlio Dourado, então ofereceu-se para resolver o problema: “Tenho um primo, que é vigia noturno numa escola, e de dia ele pode trabalhar aqui e até entregar o jornal aos domingos”.
Proposta aceita, aparece na sede da empresa, então na Avenida Ceará, na Cadeia Velha, o “Marcão”. Cabeludo, magro feito um corredor etíope, fazia jus ao apelido pela altura. Não tinha ainda o vitiligo, manchas na pele que no início da doença, tanto o afligiu. Na expressão de Júlio Dourado, ali estava um homem que seria “pau para toda obra”. E era, resolvido o problema do entregador, faltava o veículo, outro problema que ele resolveu com sua juventude e força de vontade: rodava a cidade, onde fosse preciso ir, numa bicicleta surrada, com os pacotes de jornais na garupa. Quando entregava um pacote, voltava à oficina para recolher mais. E assim passava seus domingos.
Nas segundas-feiras, lá estava aquele homem magro, olhos brilhantes e agudos, a espreitar aqueles que viriam a ser, dali mais algum tempo, seus colegas de profissão, um bando de jornalistas tocados à paixão, alegria, talento e outras coisas não recomendáveis de citar numa reportagem dessas. Naquele ambiente, Marcão parecia se sentir no habitat natural. O mundo que esperasse para ver o que ia acontecer, deveria pensar.
E eis que um dia o Página 20 conseguiu seu primeiro carro, um Furgão da Fiat, cuja chave foi entregue a Marcão, que era ali, em meio a tantos porras-loucas, incluindo os donos da empresa, o único a ter Carta de Habilitação. A bicicleta ficou aposentada. Além de entregar o jornal e ser motorista, aquele que fora definido como “pau para toda obra”, nas horas vagas, subia no telhado do prédio para consertar goteiras e até pintou a fachada com o nome do jornal. Era mesmo pau para toda obra.
Um dia, numa pauta importante, faltou ao trabalho, o repórter fotográfico José Diaz, não menos talentoso e dedicado, mas que também tinha problemas de saúde. O então chefe daquele bando de malucos, o chefe da redação, o falecido Pheyndews Carvalho, o “Fe”, decidiu sair e ele próprio fazer o material importante.
Na falta de fotografo, entregou a câmara Kodak ao Marcão. E ele fez as fotos. Reveladas, as fotos mostravam, bem mais que as imagens colhidas naquele ambiente. Revelavam que ali estava um pau para toda obra com talento, sensibilidade e olhar agudo sobre a vida. Mas não bastava só isso. Faltava a formação profissional que aquele rapaz esforçado não tinha. Quando a oportunidade apareceu, ele a agarrou coma determinação dos necessitados e formou-se em Jornalismo com habilitação naquilo que ele já sabia fazer naturalmente: comunicação social.
Tanto sabia que, assim que se tornou profissional, logo foi eleito para presidir o Sindicato da categoria, o que fez por pelo menos dois mandatos. E passou a ser professor – uma espécie de professor itinerante – de cursos de fotografias, dados aos colegas e a quem mais se interessasse.
Assim, o vigia noturno da escola, o entregador e pau para toda obra, deu espaço para um profissional que passou a ser chamado pelo governador do Estado para acompanha-lo em suas viagens, inclusive as internacionais. O mundo que aguardasse até onde aquele rapaz, acreano de Rio Branco, iria chegar.
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E viu. Tanto é que, nesta manha em que ele nos deixa, seu último patrão, o governador Gladson Ccameli, ao falar sobre sua morte, disse, por meio de nota, o que se segue:
“É difícil expressar em palavras os sentimentos quando perdemos um amigo. Na madrugada desta sexta-feira, 18, perdemos um dos nomes mais expressivos do fotojornalismo acreano, o Marcos Vicentti, que agora descansa nos braços do Pai, em decorrência de uma parada cardiorrespiratória.
Não perdi um membro querido e amado da minha equipe. Perdi um amigo. Marcão era luz, paz, serenidade. Nos fazia bem tê-lo por perto.
Os bons morrem cedo e o Marcão deixa um legado de muito trabalho, respeito, honra, integridade e luta na defesa dos jornalistas acreanos, foi inclusive presidente do sindicato da categoria por muitos anos.
Referência quando o assunto era fotografia, Marcão ganhou diversos prêmios, entre eles a Medalha Nacional da Revista Fotografe Melhor 2021. Mais recentemente, no dia 15 de outubro, ficou em terceiro lugar no Prêmio Ampla Amazônia de Jornalismo na categoria Digital, onde ele e outros dois colegas concorreram juntos em meio a mais de 100 trabalhos inscritos.
Marcão também era uma referência no turismo acreano. Sua luta por mostrar as belezas naturais do nosso Acre, também será sempre lembrada. Ele amava esse estado e fazia questão de ajudar quem trabalhava no turismo, por meio da fotografia. Também era muito conhecido por realizar expedições à Serra do Divisor, alavancando o turismo acreano.
Também não podemos esquecer que nosso amigo Marcão formou diversos profissionais no ramo da fotografia, por meio de cursos que promovia na capital acreana e em outros municípios, contribuindo para o crescimento desse setor tão importante.
Aos seus colegas da Secretaria de Comunicação e de todos os veículos de imprensa do Acre, expresso o meu
mais profundo pesar por sua morte.
À sua esposa Valéria, aos filhos, netos e demais familiares, minhas condolências e orações para que o
Senhor nosso Deus possa consolá-los neste momento de dor e sofrimento.
A todos os amigos do Marcão, desejo força, luz, paz e amor, na certeza de que ele combateu o bom combate, cumpriu a carreira e guardou a fé.
O velório será em Rio Branco, na Capela I São João Batista, situada na avenida Antônio da Rocha Viana, ao lado da TV Gazeta, a partir das 8h.
Gladson de Lima Cameli
Governador do Estado do Acre”.
Se seus ex-patrões falam daquele ex-empregado com tanto orgulho, o que não diriam os colegas que o viram crescer, que tiveram a alegria de dividir o mesmo espaço com este homem cuja altura que lhe conferia o apelido no aumentativo correspondia ao tamanho e da bondade de seu coração? O autor do presente texto, obrigado a escrever em lágrimas, só tem a dizer o seguinte:
– Valeu, Marcão. Valeu à pena ter sido seu colega.