Biografia apresenta Oswald de Andrade como intérprete do Brasil: dívidas, bigamia e solidão

'Oswald de Andrade: mau selvagem', de Lira Neto, ressalta originalidade do criador da antropofagia, que morreu 'em estado de penúria e solidão absoluta'

Autointitulado “um homem sem profissão”, Oswald de Andrade (1890-1954) tentou duas vezes ser professor na Universidade de São Paulo. Primeiro, no curso de Letras — mas perdeu a vaga para Antonio Candido (1918-2017), à época um jovem (e já célebre) crítico literário que o visitava aos domingos. Depois, inventou de concorrer a uma cadeira de Filosofia. Redigiu a tese “A crise da filosofia messiânica”, uma crítica do pensamento ocidental (dos gregos a Jean Paul-Sartre, chamado de “vaca cheirosa” que “não percebeu nada”), que recuperava as ideias centrais da antropofagia, movimento que ele próprio fundara mais de duas décadas antes, na loucura modernista dos anos 1920, e que pregava canibalizar a cultura importada para criar a verdadeira arte nacional.

O escritor Oswald de Andrade, biografado por Lira Neto — Foto: Coleção Marília Andrade

Essa filosofia antropofágica identificava na diversidade étnica brasileira o germe de uma nova utopia, matriarcal e tecnológica, capaz de orientar a construção de uma sociedade mais igualitária e criativa, que valorizasse o ócio e libertasse a todos da exploração capitalista. Oswald acabou impedido de prestar o concurso por não ter formação na área. Autor de “Oswald de Andrade: mau selvagem”, que aporta nas livrarias no dia 11 de fevereiro, Lira Neto defende seu biografado: mesmo esnobado pela academia, o apóstolo mais virulento do modernismo era um verdadeiro intérprete do Brasil e antecipou debates que estão na ordem do dia, como o pensamento decolonial e a crítica ao patriarcado.

— Enquanto outros intérpretes do Brasil, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, buscavam uma suposta identidade nacional, Oswald advertia que essa identidade tinha um quê de autoritária, homogeneizava o que é necessariamente plural. Para ele, a cultura era um exercício de alteridade, de negação das fronteiras entre o regional e o universal, o popular e o erudito — defende Lira, que biografou figuras como Padre Cícero, Getúlio Vargas e Maysa. — Embora não seja tão sistemática, a produção intelectual oswaldiana propõe uma chave de compreensão que é absolutamente contemporânea.

Ainda nos anos 1920, Oswald havia proposto um Congresso Brasileiro de Antropofagia para defender: o divórcio (só legalizado em 1977), o “homicídio piedoso” (eutanásia) e a “organização tribal” do Estado (com a substituição do parlamento por um conselho técnico consultivo); uma religião nacional (com orixás, santos populares e espíritos da floresta); uma “gramática da língua brasileira”; e até uma nova unidade de medida, um “berro” (“o espaço equivalente entre o ponto onde o berrador oficial emitisse o grito e o local onde se pudesse ouvir a última ressonância dele”, explica Lira).

Oswald afirmou que “é um estado de infância que acompanha o artista em toda a sua vida”. A nova biografia comprova essa tese. O humor violento do paulista, do qual Manuel Bandeira disse que só era possível se defender fazendo “mais blaque e mais intriga do que ele” ou afastando-se (como fez Mário de Andrade), desenvolveu-se ainda na escola, quando Oswald assumiu o papel de “gordinho espirituoso” para fugir da gozação dos colegas.

Também se interessou precocemente pelas coisas do sexo. Criado na rigidez do catolicismo, ele “não acreditava no pecado”: as “mocinhas de maiô” do circo não lhe saíam da cabeça e nem os meninos da escola escapavam de seu olhar malicioso. Mas era tímido. Sua iniciação sexual não se deu em bordéis, como era comum entre rapazes de sua classe (seu pai era dono de um império imobiliário), e perdeu a virgindade relativamente tarde, aos 20 anos, com uma jovem viúva hospedada por sua família.

— O erotismo era uma energia vital que fazia parte da persona dele. Na velhice, por conta da diabetes e outras complicações de saúde, essa energia reflui e me parece que a amargura dele no fim da vida vinha daí. A falta dessa energia sexual, da virilidade, era a morte em vida — afirma o biógrafo.

Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, sua terceira esposa — Foto: Reprodução
Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, sua terceira esposa — Foto: Reprodução

O autor de “Memórias sentimentais de João Miramar” casou-se (ou amasiou-se) sete vezes. “Oswald não se interessava por mulher, mas por deslumbrar mulheres”, acusou Pagu, a quarta esposa, com quem ele se casou (só na Igreja Católica) após se separar de Tarsila do Amaral. Quando se uniu a Julieta Bárbara, a quinta esposa, numa cerimônia civil, legalmente ainda era marido de Tarsila. A pintora obtivera a anulação do matrimônio na Justiça, mas a lei da época determinava que a decisão deveria ter sido confirmada por um tribunal superior, o que não ocorreu. “A rigor, pela letra da lei, Oswald estava incurso no crime de bigamia”, escreve Lira.

“Infelizmente no Brasil não se consegue estudar ninguém sem o colocar num trono ou num patíbulo”, reclamou Oswald certa vez. Lira escolheu essa frase como epígrafe da biografia, que não absolve nem condena o agitador modernista — especialmente quando narra sua vida íntima.

Oswald ainda vivia amasiado com a francesa Kamiá, que acabara de dar à luz Nonê (seu primeiro filho, nascido em 1914), quando desenvolveu uma obsessão por uma bailarina adolescente chamada Carmen Lídia (apelidada de Landa). Queria se casar com ela. Pior: ele era padrinho da menina, que fora batizada em Milão, aos 11 anos. A avó e tutora de Landa se opôs às intenções de Oswald, e o pai dele ameaçou denunciá-lo à imprensa e depois se matar. O escritor cogitou raptar Landa e, com ajuda de amigos, conseguiu que a Justiça tirasse a menina da avó após espalhar que ela sofria maus tratos. Mesmo separada da família, Landa não quis se casar com Oswald e, décadas mais tarde, tornou-se professora de balé da filha caçula dele, Marília, morta semana passada, aos 79 anos.

Penúria e solidão absoluta

Destino mais trágico teve a normalista Maria de Lourdes Castro Pontes, que respondia pelos apelidos de Daisy e Miss Cyclone. A moça virou musa da rapaziada protomodernista (Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida etc.) que frequentava a garçonière de Oswald de Andrade no Centro de São Paulo. Os dois se engraçaram e, depois de idas e vindas, noivaram. O casamento, porém, aconteceu dias antes da morte dela, aos 19 anos, por complicações de um aborto. Oswald tinha dúvidas se o filho era dele e a convenceu a interromper a gravidez.

— Uma vez me perguntaram se eu não tinha medo de me decepcionar com um biografado. Ainda bem que todos eles me decepcionam, são seres humanos cheios de virtudes e vício. Como biógrafo, evito as tintas do escândalo, mas sem ocultar os lados menos edificantes dos personagens — diz Lira. — Oswald não tinha vocação para uma vida bem-comportada: tripudiou de convenções intelectuais, rompeu com todo mundo, magoou suas mulheres. E pagou um preço alto por isso. Morreu em estado de penúria e solidão absoluta.

Oswald faleceu em 22 de outubro de 1954, aos 64 anos, cheio de dívidas, diabético, castigado pela asma, pela insônia e pelas hemorroidas. Chegou a bater à porta do presidente Getúlio Vargas (que ele passara a vida a criticar) em busca de financiamento para um de seus projetos imobiliários. “Vida cachorra”, reclamou em seu diário. Todos os seus livros estavam fora de catálogo. “Memórias sentimentais de João Miramar” só voltou às livrarias em 1964, mesmo ano em que ele foi homenageado por uma publicação dos concretistas. Em 1967, o Teatro Oficina montou “O rei da vela”, e o espetáculo inspirou Caetano Veloso a refundar a antropofagia, rebatizada de tropicalismo.

Mais tarde, o reconhecimento da Semana de Arte Moderna de 1922 pela crítica acadêmica confirmou Oswald como um pensador incontornável da cultura brasileira.

“A massa, meu caro, há de chegar ao biscoito fino que eu fabrico”, disse ele. A profecia tem demorado a se cumprir. O autor acabou de entrou em domínio público, em 1º de janeiro, e, diferentemente do que aconteceu com Graciliano Ramos no ano passado, quase ninguém se interessou em publicá-lo. A Unesp prepara uma edição comemorativa de “Pau-Brasil”, livro de poemas de 1925, e a Global vai lançar “Memórias sentimentais de João Miramar”. E é só.

— Oswald nunca foi canônico. Sua obra é experimental demais para altas tiragens — diz Lira. — Brinco que Oswald era tão à frente de seu tempo que o tempo dele ainda não chegou.

Serviço:

Oswald de Andrade: mau selvagem’

Autor: Lira Neto. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 528. Preço: R$ 129,90.

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