Ex-esposa acusa dirigente do Santo Daime de pedofilia e tráfico de mulheres

O acusado nega todas as acusações. Depoimento foi dado à DEAM e à Superintendência da Polícia Federal

Pedofilia, tráfico internacional de mulheres, venda de daime – ou ayahuasca-  em gel para a Europa e outros países ao redor do mundo, abuso sexual, espancamentos, ameaças e tentativas de morte. Acusações sobre esses crimes foram feitas na última sexta-feira (3), à Delegacia de Proteção à Mulher (Deam) e à Superintendência da Polícia Federal no Acre, contra a cúpula diretiva da Colônia Cinco Mil, em Rio Branco, e do Céu do Mapiá, no Amazonas – organizações que seguem a doutrina do Santo Daime. 

O principal acusado é um homem identificado como Maurílio José Reis, um mineiro de 70 anos que se relaciona com a doutrina no Acre desde 1975 e que é venerado pelas duas comunidades como “padrinho”. O acusado nega todas as acusações.

Maurilio se relaciona com a doutrina no Acre desde 1975/Foto: Cedida

As acusações são sustentadas pela professora aposentada Maria Isabel Sabino Fernandes, 48 anos, natural de Recife (PE) e que, entre idas e vindas, está no Acre e no Amazonas há sete anos. Desta última vez, ela está em Rio Branco desde o dia 31 de dezembro e resolveu denunciar Maurílio José Reis, seu marido por sete anos, apontando-o como um homem que utiliza a religião e a doutrina em benefício próprio, inclusive para ganhar dinheiro e sobreviver com sua família, já que não tem profissão ou emprego. 

Antes de viver com Maria Isabel, Maurílio José Reis foi casado com Maria Gregório Melo Reis, conhecida por “Neves”, com a qual tem três filhos – Valdecir Gregório de Melo Reis, Simeão Gregório e Rita de Melo Reis, todos adultos. Rita vive na Espanha, mas atualmente está no Céu do Mapiá; Simeão mora no interior do Ceará e Valdecir, mora em Rio Branco, na AC 10 (estrada de Porto Acre). De acordo com as denúncias, é Valdecir o principal responsável pela exportação do daime em gel para a Europa, produto que ele entrega pessoalmente em seguidas viagens ao continente europeu.

“Neves”, a primeira esposa de Maurílio  Reis – do qual se diz separada mas o aceita dentro de casa, em Rio Branco, vem a ser filha mais velha de Sebastião Mota de Melo, também conhecido como “Padrinho Sebastião”, um cidadão nascido em Eirunepé, no Amazonas, em 1920, e que faleceu no Rio de Janeiro, em 1990.

Padrinho Sebastião foi discípulo direto de Raimundo Irineu Serra, o fundador da doutrina que usa como sacramento a bebida chamada ayahuasca ou Santo Daime. Os sacramentos da doutrina – também chamados de trabalhos – são associados a orações e cânticos (hinos) a diversas divindades, caracterizado como cultos resultantes da mistura das religiões e crenças dos três troncos étnicos formadores do povo e cultura brasileiros – indígenas, africanas e européias. No entanto, nos “trabalhos” predominam as deidades cristãs – o Deus Pai, Jesus Cristo e Nossa Senhora, e os adeptos da doutrina a consideram uma variação da religião cristã. 

Sebastião Mota de Melo foi fundador do assentamento onde hoje é a Vila Céu do Mapiá, no Amazonas, que se tornou um centro de peregrinação que recebe fiéis e adeptos da doutrina do Santo Daime provenientes do mundo inteiro. O mesmo acontece com a Colônia Cinco Mil, agora com menos frequência.

Sebastião Mota de Melo foi também fundador da entidade religiosa Iceflu (antigo Cefluris), a Igreja Eclética da Fluente Luz Universal, um centro que se apresenta como espiritualista fundado em Rio Branco em 1974, na região conhecida como Cinco Mil, nos arredores da capital acreana. O Iceflu representa uma rede de organizações associadas à doutrina do Santo Daime em todo o país e internacionalmente, incluindo a Igreja Céu do Mar, em São Conrado, no Rio de Janeiro.

A Igreja Céu do Mar, no Rio, é dirigida pelo psicólogo Paulo Roberto Souza e Silva, acusado de abuso sexual e trabalhista. Um processo contra ele, um dos mais conhecidos padrinhos do Santo Daime no Brasil, corre em sigilo na Justiça do Trabalho do Rio. Paulo Roberto não teria comparecido a nenhuma audiência. O processo é movido por uma jovem funcionária e frequentadora, de 33 anos, expulsa  da igreja quando veio à tona a informação de que Paulo Roberto, na condição de padrinho e líder da Igreja,  a assediava. 

A esposa de Paulo Roberto vem a ser Nonata, também filha de Padrinho Sebastião, irmã de ‘Neves’, a esposa de Maurílio José Reis, agora também acusado das mesmas práticas do concunhado Paulo Roberto, que é procurado pelo sistema de Justiça do Rio desde novembro do ano passado.      

As polícias Civil do Acre e Federal, que colheram os depoimentos de Maria Isabel Sabino Fernandes na sexta-feira, têm várias outras queixas registradas pela mulher em anos anteriores, mas as investigações não tiveram sequência nesse tempo todo e Maurílio José Reis nunca sequer foi intimado à depor.  

Veja na íntegra os trechos da entrevista com a denunciante

Denúncias foram feitas em entrevista exclusiva ao ContilNet/Foto: Tião Maia

“Minha cabeça está à prêmio”, diz mulher que acusa Maurílio José Reis

Quem é você? 

Meu nome é Maria Isabel Sabino Fernandes e tenho 48 anos. Sou de Olinda (PE). Sou bacharel em Direito, graduada e pós-graduada em Educação. Sou professora aposentada pela Prefeitura do Municipal do Recife, em Pernambuco. Me aposentei desde que eu me envolvi com ele. Eu me aposentei para poder trabalhar como missionária do Daime por todo o Brasil e em alguns países do mundo.

E quando você diz “ele”, você está se referindo a quem? Qual o nome do acusado? 

Maurílio José Reis. Ele hoje tem 70 anos de idade. Também denuncio o seu filho Valdecir Gregório de Melo Reis, que sempre se junta ao pai para me ameaçar e me agredir também.

O que ele faz na vida?

Ele é dirigente do Daime no Céu do Mapiá e já foi da Cinco Mil. Eu o conheci em Lagoa Seca, na Paraíba, fazendo a divulgação da doutrina, como uma espécie de missionário religioso. Passei a acompanhá-lo nessa missão. Eu também, passei a desenvolver esta missão com a fundação da minha Igreja “Céu de Santa Clara”. Eu me juntei com ele.

E você passou quanto tempo com ele?

Sete anos. Sete anos como homem, mas eu já comecei a trabalhar com ele há oito anos. Eu o conheci quando fui convidada a levá-lo ao Nordeste,  na Igreja “Reinado de Maia”, em Lagoa Seca, próximo de Campina Grande, da Madrinha Mércia, que hoje está fechada, essa igreja não existe mais. E de lá eu fui levar ele para Coqueirinho, na Paraíba, que é outra igreja. Fui convidada para ser uma espécie de guia dele através do meu amigo e advogado Jorge Camilo. da Paraíba, que é da doutrina há mais de 20 anos, Foi ele quem me convidou para ir lá pegar e levar de Campina Grande para João Pessoa, porque eu tinha um carro bom e sempre levava as comitivas. E logo em seguida ele já foi me convidando para eu e meu companheiro na época.

Você era casada?

Eu tinha um marido. João Vicente. Eu tenho 3 filhas adultas e 3 netos, e nós fomos trabalhar para o Maurílio. E nisso ele nos convidou para trabalhar com ele fazendo Daime e outros tipos de trabalhos relacionados à doutrina. Ele convidou a gente para viajar com ele para o exterior, e convidou a gente porque, na verdade, ele queria estar perto de nós.

E aqui na Polícia Civil e na Polícia Federal a senhora veio fazer o quê? Pedir segurança de vida? Se sente ameaçada?

Sim. Vim também atualizar denúncias que fiz lá atrás, nas outras vezes em que estive aqui, denúncias que estavam muito desatualizadas, desde 2018. Eu tenho mais coisas para informar às polícias.

Os dois foram casados por quase 10 anos/Foto: Cedida

O que, por exemplo?

Tudo o que vi. Ele tem envolvimento com uma rede de pedofilia. Ele me levou na casa de vários pedófilos, dirigentes da doutrina. Comecei a ver as coisas, até porque trabalho com direitos humanos há mais de 25 anos. Um amigo dele queria contratar crianças ara sexo junto às mães e avós.

E quantos anos tinham essas crianças? Eram meninos ou meninas?

Eram meninas, em torno de até 14 anos, mas havia meninos também.

Então esse Maurílio Reis é homossexual também?   

Penso que não devemos confundir quem tem um comportamento desses, doentio, com a comunidade LGBTQIA+. Esse tipo de gente não tem nem classificação. Eu nem sei dizer o que ele é. Só sei dizer que ele abusava de crianças de ambos os sexos.

E a senhora rompeu com ele a partir de quando?

Desde quando ele me prometeu de ir lá para casa, no Recife, e me prometeu que não faria essas coisas lá. Eu o aceitei porque estava o tirando do Acre, da sua zona de poder (religioso) e achei que lá, com ele vivendo de forma humilde, ele não ia fazer mais isso. Eu achei que ele, como pobre, longe do poder, longe do dinheiro, ele ia tentar viver comigo bem. Voltamos para o Recife, para minha casa, em 1 de outubro, depois de quatro meses viajando pelo país. Mas nesses quatro meses de trabalho da doutrina, a gente brigou quase todos os dias.

Por que essas brigas? Ciúmes?

Não, não era isso. Era porque, toda vez que eu o pegava fazendo essas coisas, a gente brigava. Uma vez, na casa de um amigo dele, peguei-o assediando um garoto que trabalhava numa pensão, no Rio de Janeiro. Na casa de um outro amigo dele, que era dirigente da Igreja Rainha do Mar, Marcos Gracie Imperial, e saímos da casa deste homem, depois de dez dias, expulsos por ele porque Maurílio estava assediando os filhos do dono da casa. Isso era motivo de briga, toda vez que eu pegava ele no flagra era confusão. Ou então quando ele me convidava para fazer suruba com homens e mulheres da doutrina e isso ocasionava brigas porque ele queria que eu, obrigatoriamente, aceitasse essa conduta dele.

A senhora o classificaria como predador sexual?

Eu o classificaria como abusador de criança e adolescente, de ambos os sexos, como traficante internacional de mulheres.

A senhora tem indícios disso? 

Tenho. Eu sou um exemplo de que ele tentou me agenciar para milionários estrangeiros. Tanto para mim como para os homens e não foi uma ou duas vezes não… Eu sei que, antes de mim, algumas das amantes dele, ele as vendeu  para amigos dele, milionários, no exterior, inclusive para o Japão, França. Tenho os nomes delas e sei onde elas estão. Em 2018, eu fiz essas denúncias à Polícia Federal mas, para minha surpresa, hoje (ontem), quando fui à Polícia Federal descobre que tudo o que denunciei no passado havia sido arquivado, sem que ele tenha sido encontrado para depor, sob a alegação de que os endereços que forneci estavam errados, sendo que eu tenho certeza de que forneci-os corretamente.

E na Polícia Federal, o que disseram à senhora sobre o assunto?

Disseram que já me colocaram na lista do programa de proteção à testemunha e vítima, mas isso, até o momento, corresponde apenas a um papel. Na prática, continuo correndo risco de vida porque Maurílio têm um monte de capangas na cidade, verdadeiros matadores que são ligados a ele e por isso eu sei que minha cabeça está a prêmio e por isso estou dando essa entrevista ao senhor na esperança de que, com essa história se tornando pública, eu possa sobreviver.          

O outro lado da história. O que diz Maurilio?

“Essa mulher é surtada, louca de carteirinha”, diz o acusado 

Ao ContilNet, por telefone celular, de números finais 77, respondeu os questionamentos da reportagem com base no depoimento de Maria Isabel. “Essa mulher, eu tive, sim, uma relação com ela. Morei uns tempos com ela, mas ela é totalmente surtada de carteirinha, é completamente louca de atestado. Eu só não faço nenhum processo de retaliação contra ela por causa do estado de saúde dela”, disse, já no primeiro contato.

Os dois em viagem a Palestina, enquanto eram casados/Foto: Cedida

Segundo Maurílio José Reis, a mulher foi “até aposentada por bipolaridade lá no Recife” e teve “um problema mental seríssimo”.

“Eu tentei até curá-la, ficando perto mas, na última vez em que estive perto dela, ela tentou, de forma muito séria, contra a minha vida. Eu tive que sair correndo de perto dela, lá do Recife. Saí correndo com a roupa do corpo , mas ela está aqui no Acre atrás de mim e está querendo me perseguir de todo o jeito. Eu vou acabar tendo que abrir um processo contra ela por injúria, difamação e calúnia”, disse.

Sobre as denúncias de estupros de vulneráveis e de tráfico de mulheres e de venda de daime no exterior, Maurilio Reis disse não ter nada a temer. “Não respondo a nenhum crime por isso”, disse. 

Sobre a venda de Daime para o exterior, afirmou que essa é uma atividade de quem quer divulgar a doutrina para o mundo todo. “O que nós queremos é que o mundo conheça o Daime e nossa doutrina. Não é uma atividade comercial”, acrescentou.

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