Pobres algoritmos (Por Miguel Esteves Cardoso)

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É pena que a palavra “artificial” se separe cada vez mais da mãe, que é a palavra “arte”.

A arte era sempre artificial, por ser uma representação, por tentar apanhar a vida, e passá-la para o papel, ou para a tela, ou para a pauta, ou pedra.

Depois, os artífices foram despromovidos a inferiores dos artistas, o artifício e a artimanha começaram a confundir-se – e hoje já ninguém protesta quando se chama inteligência artificial ao que não é nem inteligência nem artificial. É a sigla que salva o dia: IA é o que é. É uma ajuda? Iá, iá.

Tem melhorado muito, mas ainda não impressiona. Veja-se o meu Spotify. Armado com milhares e milhares de músicas escolhidas por mim, dir-se-ia que o algoritmo já saberia tudo o que há a saber sobre o meu gosto musical.

Mas não. As playlists de sexta-feira, em que adivinham músicas novas com que talvez possa engraçar, falham miseravelmente. Primeiro, porque se baseiam no que já ouvi, e não no que quero ouvir. Depois, porque confundem o que ouço para conhecer com o que ouço porque já conheço e gosto de ouvir.

A iá-iá escolhe música ié-ié na esperança de que eu goste. Há assim qualquer coisa de muito desagradável: sinistra e subserviente, como um mau génio com chinelos de Aladino, saído a contragosto de uma lâmpada esfregada, a tentar adivinhar os nossos desejos, para melhor nos poder tramar.

O algoritmo só contém o passado e supõe, erradamente, que é da música mais recente que ouvimos de que mais gostamos.

Tem algo de morto, e de exterior a nós, porque não contém o presente: o momento antes de ouvir, em que ainda não sabemos o que queremos ouvir, porque ainda está a ser construído dentro de nós.

E também não contém o futuro: para onde nos levará uma música de que afinal não gostamos, por causa da luz do dia, ou de uma frase dita ao pequeno-almoço ou, crucialmente, por causa da outra pessoa que também está a ouvir aquele Spotify.

Pobre iá-iá: a alma não se deixa apanhar porque está sempre a mexer-se.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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