Aposentado e vivendo em Santa Catarina, o pesquisador Alceu Ranzi, geógrafo e paleontólogo que lecionou por mais de trinta anos na Universidade Federal do Acre (Ufac), falou, nesta semana, com exclusividade ao Contilnet, sobre o ingresso, pelo Ministério Público Federal (MPF), de uma ação civil pública contra um pecuarista e proprietário rural pela destruição de sítio arqueológico do tipo Geoglifo, em sua fazenda, em Capixaba, interior do Acre.
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Embora não se julgue pessoalmente o descobridor da existências dos Geoglifos na Amazônia, o professor Alceu Ranzi há mais de duas décadas trabalha incansavelmente na divulgação e na defesa das estruturas arqueológicas encontradas no Acre.
Ranzi é autor do livro “Geoglifos do Acre: passado profundo”, que narra a saga do pesquisador que propõe chamar a atenção do poder público e expressar na imprensa sua preocupação com relação a esse patrimônio. Sua peregrinação culminou em importantes projetos e parcerias que adotaram ferramentas multidisciplinares para entender a ampla distribuição dessas estruturas de terra na Amazônia Ocidental.
O livro pode ser dividido em duas partes. A primeira compreende a descoberta, divulgação e conservação: a situação dos geoglifos acreanos. Nela o autor primeiramente convida o leitor a uma visão aérea. Aliás, foi esta sensação que ele experimentou ao tomar um voo comercial chegando à cidade de Rio Branco em dezembro de 1999.
Olhando de uma janela de um Boeing 737 enxergou gigantescas estruturas circulares esculpidas no solo, cujas coordenadas remetiam ao antigo Seringal Bagaço, na margem direita do rio Acre. Ele retornaria no ano seguinte com apoio do governo estadual em uma aeronave de pequeno porte acompanhado de dois fotógrafos profissionais, Edison Caetano e Edson Guilherme. O piloto e esta equipe sobrevoaram o referido seringal e fotografaram as estruturas que tinham formas de círculo, quadrado e “U” duplo, e ainda sobrevoaram ao longo da BR-317, observando e registrando figuras com formas de octógono e quadrado.
Tais estruturas foram chamadas por Alceu Ranzi de geoglifos, por ver semelhanças com as mesmas figuras que ocorrem nos Andes, embora as do território brasileiro tenham diferenças na forma e composição por serem em valas e muretas de terra que formam desenhos geométricos. Os desenhos no Peru são esculpidos em pedras.
As fotos ganharam as páginas dos jornais e dos canais de TV do Acre e paulatinamente, ao longo dos anos, os geoglifos repercutiram na imprensa nacional e internacional. A existência dos sítios foram registrados primeiramente ainda na década de 1970, pelo arqueólogo Ondemar Dias Jr., mas sem ter relevância nas interpretações da arqueóloga Betty Meggers, que coordenava estas pesquisas na Amazônia.
A pesquisadora escrevera em uma correspondência em 2003 ao autor sobre os geoglifos do Acre, demonstrando uma visão de que os povos que construíram tais estruturas seriam comunidades pequenas em vez de populações sedentárias. Porém, o autor mostra que os trabalhos levados a cabo em colaboração com os arqueólogas Denise Pahl Schaan, já falecida, Martti Pärssinen, Sanna Saunaluoma e outros, evidenciaram que os geoglifos do Acre têm origem entre populações densas e complexas socialmente. As interpretações recaem sobre os valores simbólicos destas paisagens que são encaradas como “monumentos cerimoniais”.
A seguir, os principais trechos de uma entrevista com Alceu Ranzi:
O senhor, ainda que aposentado e vivendo em Santa Catarina, acompanha o que vem acontecendo em relação aos geoglifos na Amazônia e, no Acre, principalmente? O senhor saiu da Amazônia e dos geoglifos, mas parece que a região e aqueles símbolos não saíram do senhor, não é isso?
Alceu Ranzi – Sim, impossível. Estou aposentado e moro em Santa Catarina, mas ainda tenho vários projetos a executar e outros em execução.
O MPAC acaba de pedir uma indenização financeira de um fazendeiro local que destruiu um sítio arqueológico de forma proposital na região de Capixaba. O senhor acha que esse é o caminho para evitar a destruição dessas estruturas misteriosas?
Alceu Ranzi – Pelas leis brasileiras a ação e o pedido de indenização estão corretos. Mas ao mesmo tempo, é necessário que se faça uma constante campanha de esclarecimento sobre a importância dos geoglifos como Patrimônio Nacional. Os Geoglifos como Patrimônio Nacional são protegidos pela Constituição.
O que aconteceria do ponto de vista científico se tais sítios fossem aterrados?
Alceu Ranzi – Seria como destruir uma escultura de Michelangelo ou destruir uma obra do Leonardo da Vinci. Uma perda para a humanidade.
O que deve ser feito concretamente para a preservação e divulgação da importância da preservação desses sítios?
Alceu Ranzi – Uma campanha de educação, esclarecimento da importância dos Geoglifos. Dar ciência aos proprietários do “tesouro” existente em suas terras. Temos a responsabilidade de preservar para nós e para as gerações futuras. Sabemos pouco sobre os Geoglifos. A sua preservação permitirá estudos mais profundos, no presente e no futuro com novas tecnologias.
O que de fato sabemos sobre os Geoglifos?
Alceu Ranzi – Praticamente nada. Conhecemos aproximadamente 1000, visitamos menos
de 100 e estudamos menos de 20.
E quantos seriam esses Geoglifos e onde eles estão todos?
Alceu Ranzi – Segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), ao menos dez mil geoglifos aguardam para serem revelados e estariam não só no Acre, mas em toda a Amazônia.
O senhor, como pesquisador, se considera o descobridor desses sítios na Amazônia?
Alceu Ranzi – Eu tenho trabalhado nesse tema, desde as fotos que obtivemos em 2000 com o Edison Caetano.O jornal o Rio Branco, na edição de 15 de agosto de 1986, publicou uma imagem de um geoglifo, foto essa obtida pelo fotógrafo Agenor Mariano. Creio ser a primeira imagem na imprensa. Está nos arquivos do O Rio Branco. Depois, A Gazeta e A Tribuna deram a primeira página em 16 de abril de 2000, com as fotos do Édison Caetano. Mas eu diria que tudo começou com as fotos aéreas dos fotógrafos Agenor Mariano, Edison Caetano, Sérgio Valle e Diego Gurgel. O Diego Gurgel possui o maior acervo de imagens dos geoglifos. As fotos do Diego são requisitadas por agências de notícias, revistas e cientistas nacionais e internacionais.
Enquanto por aqui os Geoglifos não têm grande importância, ao ponto de alguns serem inclusive destruídos, como ocorreu neste caso do fazendeiro em Capixaba, eles têm um profundo apelo internacional, não é? As imagens são muito requisitadas em todo o mundo, não é isso?
Alceu Ranzi – Sim, de lá para cá, o tema tomou proporções de apelo internacional. Hoje equipes do INPE e da USP (Universidade De São Paulo) estudam para fins botânicos, históricos e ecológicos. Eu digo que a história dos Geoglifos é um patrimônio de todos os Acreanos. Eu gostaria de ver uma equipe de cientistas da Ufac assumindo o protagonismo dos estudos com os Geoglifos.
Qual a razão de tanto interesse do mundo nesses sulcos na terra?
Alceu Ranzi – O interesse se confunde com a busca de informações sobre a história da origem da própria humanidade. No ano passado, uma equipe da NETFLIX esteve no Acre. Passou uma semana realizando voos a partir do Aeroporto do Ortiz (uma pista de pouso e decolagem privada, situada nos arredores de Ri Branco, na região da BR-364, na saída para Porto Velho). Logo deverá ser lançado um documentário.
Do ponto de vista científico, as pesquisas continuam?
Alceu Ranzi – Sim, e de forma mais avançada. A novidade agora é o uso de LIDAR e uma equipe da USP esteve há poucos dias no Acre realizando estudos para o Projeto Amazônia Revelada.
O que é o LIDAR?
Alceu Ranzi – É uma tecnologia revolucionária que permite ver através da copa das árvores. Veremos os Geoglifos em áreas desmatadas e geoglifos na floresta.
E, depois de tantos estudos e pesquisas, a pergunta que não quer calar é esta: quem construiu os Geoglifos?
Alceu Ranzi – Os geoglifos foram construídos pelos povos originários. Por acreanos, antes de existir o Acre. A revelação dos Geoglifos é uma obra coletiva. Os Apurinãs sempre souberam dos Geoglifos. O desmatamento para a pecuária permitiu a nossa visão e os estudos precisam continuar. Daí a imperiosa necessidade de preservação.