Artigo de Victor de Oliveira: “Isso Aqui é um Pouquinho de Brasil, iaiá”

No início do século XX, lá pelas bandas do mais pobre e seco interior do sertão do Ceará, nasceu um bode simpático, barbudo, baixinho, que vivia a acompanhar as procissões de fé e as festas populares mais animadas. Não se sabe muito bem de qual paragem surgiu aquele bode, se tinha dono ou se era vacinado… contudo, sabe-se que ao ver tanta fome, miséria e falta de água, rumou sozinho pra Fortaleza, onde ele haveria de conseguir ajuda pro seu povo, visto que para além de ser bode, era um cabra da peste romântico, emotivo, sensível com a dor do próximo.

Logo passou a ajudar comerciantes na dura lida do transporte de couros e borracha pelos portos, de modo que virou uma espécie de mascote da região, com total liberdade de ir e vir. Dizem até ter rejuvenescido em sua nova vida mais próximo ao mar. Fato é que todo dia, ao cair da tarde, passou a frequentar o centro boêmio da cidade, fazendo amizade com artistas, intelectuais e poetas do lugar, bebericando, pitando e serestando pelas ruas e mafuás, indo e voltando – de tanto que passou a ser chamado de “Ioiô”.

E lá se ia o bode Ioiô bater seus cascos nos teatros e palácios de governo, sem a menor cerimônia. Participou de saraus literários e dizem que até comeu a fita inaugural do famoso Theatro José de Alencar. Talvez por isso tenha começado a se sentir rejeitado, quando os mais abastados e poderosos passaram a se incomodar com a presença daquele simples animal em meio tão nobre. Um bode do interior, tão ligado às camadas pobres e marginalizadas, as quais o poder político desejava esconder por debaixo dos tapetes, não combinava em nada com o luxo dos clubes e salões da elite – afinal, para a burguesia, as maravilhas do mundo moderno não harmonizavam com a matutice de um bode do povo (povo, aliás, que já era mamulengo nas mãos dos poderosos há tempos).

Já naquela época, a política republicana trazia consigo antigos sistemas coloniais que se consolidaram na eleição de famílias tradicionais e bandidos de toda estirpe, ladrões de dinheiro público que defendiam bandeiras difusas, como Deus (apesar do total desprezo aos pobres), família (apesar do mais absoluto machismo doméstico) e liberdade (apesar das inconfundíveis ações fascistas que reinavam, quase sem incômodo) – e olha que eu tô falando do século passado, minha gente.

Assim sendo, em um ambiente político de muita insatisfação popular, o povo foi às urnas, que a essa altura ainda não era eletrônica, e fez o que ninguém esperava: elegeu Ioiô como vereador de Fortaleza, vereador eleito, com votos suficientes para o cobiçado posto de primeiro colocado. Tratava-se de um

deboche com os poderosos, mas uma mensagem porreta! Sem ter feito campanha alguma, sem dinheiro e sem tempo de televisão, um animal ruminante era eleito pelo povo como seu legítimo representante!

Contam que a confusão foi tão grande, que os empresários e poderosos logo articularam um golpe para que o bode Ioiô sofresse impeachment e não assumisse o cargo ao qual foi eleito legitimamente, em processo democrático. Contudo, a justificativa jurídica não livrou os políticos daquele vexame ressonante e só alimentou o monstro – Ioiô saiu da vida pública para entrar na história, e mitou. Ele sim foi um mito, ao contrário de tantos outros que aparecem por aí, vez ou outra.

A história de Ioiô nos mostra que nós não precisamos de salvadores da pátria para nada, pois o povo sempre foi grande o suficiente para se salvar sozinho. O que precisamos é de empoderamento popular e representatividade dos marginalizados, que apesar de sua condição, são cidadãos legítimos e merecem respeito como tal. Ioiô é a representação da resiliência de um povo que faz graça até da própria desgraça e, com esse jeitinho inigualável, nos revela o real salvador da nossa pátria: o nosso bom humor, que foi, mais uma vez, demonstrado ontem, após o resultado das eleições no Brasil.

Acaso não seja fanático, mesmo tendo torcido pela vitória do candidato derrotado, ao ver as imagens do povo na rua cantando, feito uma reza, um ritua… você terá que reconhecer que, pelo menos por um instante, o Brasil pode gritar sua resistência e ser feliz (de novo). Ruas do Brasil foram tomadas por gente que passou os últimos anos sofrendo sanções sociais e políticas apenas por quererem ser o que bem querem – e não há maior libertação possível do que conseguir vencer forças que te sufocam a própria presença no mundo.

A verdade é que a eleição democrática de um legítimo representante do povo nordestino brasileiro, assim como o bode Ioiô, nos mostrou que talvez tenhamos chance de reconstruir a democracia, acreditar nas instituições e na bondade das pessoas. Talvez, agora nessa nova fase do Brasil, possamos voltar ao normal civilizatório, falando sobre o respeito aos índios, aos negros, às mulheres, aos favelados, aos marginalizados. Esse cenário, essa representação, essa festa que a gente viu ontem… isso aqui, ioiô, que foi apenas um pouquinho de Brasil, iaiá. Também um pouco de uma raça que não tem medo de fumaça, e não se entrega não (pro bem da nossa saúde mental).

Ps.: Resistência é o ato ou efeito de resistir. Capacidade de suportar o sofrimento e se opor à opressão. Movimento natural de firmeza individual e coletiva contra a liberdade de existência como a gente é, e não como um homem branco, heterossexual e rico gostaria que a gente fosse.

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