O apresentador e empresário Carlos Roberto Massa, o “Ratinho”, não deverá de vida fácil caso de fato se disponha a explorar propriedades das quais alega ser proprietário no Acre. Um grupo de índios e seringueiros deverá promover protestos e manifestar suas insatisfações em relação à presença do apresentador e empresário no Acre por causa de outras duas funções que ele exerce, a de ruralista e madeireiro.
É nessas duas últimas condições que “Ratinho” é dono de duas fazendas em Tarauacá (AC), a pouco mais de 400 quilômetros de Rio Branco, as quais são ocupadas por índios e seringueiros cujas lideranças não concordam com a ocupação e devem se manifestar contra o apresentador, segundo revela uma publicação do site “De Olho nos Ruralistas”, um observatório que acompanha o comportamento dos empresários do agronegócio brasileiro.
De acordo com o observatório, as fazendas foram adquiridas junto à Companhia Paranaense de Colonização Agropecuária e Industrial do Acre (Paranacre) e, de acordo com o site “De Olho nos Ruralistas”, são fruto de um processo de grilagem e exploração de mão de obra em regime análogo à escravidão.
As propriedades rurais são parte de um verdadeiro império do agronegócio. Juntas, somam 175,3 mil hectares e ficam às margens da BR-364, numa área com forte presença indígena e de disputas com posseiros, que remontam aos tempos da ditadura, iniciada em 1964.
As fazendas já pertenceram ao seringalista e ex-senador biônico Altervir Leal, já falecido, que, falido após perder a proteção dos militares dos quais era aliado na ditadura, repassou o latifúndio para um grupo de empresários de Londrina, interior do Paraná, entre os quais o ex-controlador do extinto Banco Bamerindus, José Andrade Vieira, dono do extinto Bamerindus, que foi senador da República e faleceu em 2015.
De acordo com o observatório, as atenções de “Ratinho” em relação ao Acre não é por acaso. O programa que ele apresenta no SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) deve fazer uma série de reportagens sobre o Acre e isso acontece no momento em que o apresentador acena com a possibilidade de aceleração de seus investimentos na Amazônia.
De acordo com o site, em 2002 o comunicador pagou pelas áreas cerca de R$ 330 mil ao grupo de empresários de Londrina (PR), que controla empresas como o “Café Cacique”, da “Viação Garcia” e o espólio do antigo Bamerindus. As glebas, denominadas de Paranacre A e Paranacre B, em referência à companhia, estão até hoje registradas em nome da Radan Administração e Participação Ltda, com sede em Curitiba e cujo sócio-administrador é o pecuarista Dante Luiz Franceschi.
Em 2018, em entrevista ao apresentador Amaury Júnior, da Rede Band, “Ratinho” revelou que s áreas têm na verdade 200 mil hectares e que ele planejava explorar madeira no local. Segundo o observatório, aa diferença quanto ao tamanho se dá justamente por conta de embates com populações tradicionais. O imóvel é vizinho da Terra Indígena (TI) Rio Gregório, habitada por moradores de sete aldeias das etnias Yawanawá, Kaxinawá e Katukina-Pano e demarcada inicialmente com perímetros errados. Na antiga demarcação não estavam incluídos as cabeceiras e os afluentes dos principais rios e igarapés da região, lugares de caçadas tradicionais e cemitérios sagrados que guardam os corpos de importantes líderes.
“Essa região nos pertence desde os tempos imemoriais da ocupação humana”, resume o cacique Biraci Brasil Yawanawá. Nos anos de chumbo, como parte de sua “política desenvolvimentista”, o regime ofereceu uma série de incentivos fiscais para que grupos do centro-sul do país, chamados pelos acreanos de “paulistas”, comprassem terras na Amazônia. A ideia era que eles capitaneassem uma ampla transformação da estrutura fundiária e das atividades produtivas.
O comerciante Altevir Leal, que tornaria senador biônico pela Arena, partido de sustentação da ditadura, havia se apossado de mais de sessenta seringais no município e foi um dos vendedores. “Ele trouxe várias instituições para o Acre e se apropriou de muitas terras”, relata o cacique. “Trouxe todo o sistema de Justiça, as instituições do governo federal, e legalizou”, denunciou.
Leal comercializou a maior parte dos terrenos para os empresários paranaenses, antes que eles chegassem a “Ratinho”. Alguns imóveis passaram também pelas mãos de Agapito Lemos, outro empresário. Muitos foram desmembrados e revendidos. “Compraram 500 e poucos mil hectares de terra com os índios junto”, disse Biraci Brasil, sobre a Paranacre. “Chegaram e falaram que os índios não podiam mais plantar, caçar, nem pescar”, completou.
O cacique Biraci Brasil deixou Tarauacá em 1980, aos 17 anos, para estudar em Rio Branco, e só retornou em 1992, com o desafio de liderar e reorganizar os Yawanawá, em defesa do território. Por muito tempo, os povos originários foram explorados pelos brancos e intimidados a não mais falarem a língua tradicional, praticarem rituais sagrados e exercerem seus costumes., como mostra depoimento de Raimundo Luís Iauanauá ao jornal Varadouro, de agosto de 1981:
“Quando nós fala daqui do nosso terreno, os gerentes da Paranacre diz que nós não tem terra aqui. Comparação: se tem gado da firma invadindo nosso roçado e nós fala pra ele que tem gado invadindo o nosso lado, acabando com nosso roçado, ele vai e diz: “Você aqui não tem terreno. Tudo aqui é da firma. A terra é da firma”. Então nós não tem direito à nossa terra? Nós estamos aqui servindo de escravos da Paranacre”, relata o cacique.
O trecho consta de um relatório de identificação do professor Marcelo Piedrafita Iglesias, doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). No documento, ele relata que os “paulistas” interessados em regularizar suas imensas propriedades cadastravam-se no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por estimativa, apresentando extensões muitas vezes superdimensionadas.
“Estas terras cadastradas no Incra levavam em conta as enormes extensões dos fundos dos seringais adquiridos pela Paranacre, algumas declaradas ‘devolutas’ pelas próprias escrituras, outras de propriedade de nomes já falecidos, de herdeiros ou de ‘quem for de direito’”, destaca. O caso, acrescenta, foi um dos mais discutidos na época “como indicativo dos fortes processos de grilagem que estavam acontecendo em muitos municípios”.
Conforme o antropólogo, quando não optavam pela realização de desmatamentos para a abertura de fazendas de gado, os empresários do centro-sul colocavam seus próprios gerentes para movimentar os barracões ou, mais frequentemente, arrendavam terrenos.
Nesta última situação, como consequência do acordo entre arrendatários e bancos estatais, o seringueiro (indígena ou não indígena) continuava não sendo o dono da borracha que produzia, porque ela já estava empenhada como garantia da safra de seu patrão. Segundo Inglesias, a Paranacre controlava as transações comerciais realizadas por seus fregueses com borracha e mercadorias, “contando, em diversas oportunidades, com apoio policial para alcançar seus objetivos”.
Ainda de acordo com ele, por volta de 1985 a empresa conseguiu regularizar as cadeias dominais desses seringais junto ao Incra. “Fizeram a descriminação das terras e eles perderam uma parte, que eram as terras devolutas”, conta. “Com a falência dos seringais e da borracha, mantiveram representantes ali, com certo domínio, mas já sem nenhum investimento ou atividade expressiva”.
A Paranacre foi extinta oficialmente em 2004, por liquidação voluntária. Em 2009, durante processo de revisão dos limites da TI, feito pela Fundação Nacional do Índio (Funai), Carlos Massa “doou” cerca de 50 mil hectares reivindicados pelos indígenas. No ano seguinte, quando a Radan obteve dos governos federal e estadual licenciamento para exploração madeireira em 150 mil hectares na Floresta Estadual do Mogno, na margem esquerda da rodovia, os Yawanawá voltaram a protestar, ameaçando fechar a estrada. Eles se diziam desrespeitados pelo projeto de exploração, apresentado sem nenhum tipo de consulta prévia às comunidades.
“Quando eu soube dessa situação — o governador era o Jorge Viana —, falei que teríamos problemas, porque o Ratinho queria fazer um manejo, uma indústria de madeira”, comenta Biraci Brasil. “Ele ia promover violência e desmatamento; era um projeto grande, de 100 milhões de dólares”.
De acordo com o líder, houve uma negociação e um acordo, com a intermediação dos governos estadual e federal. “Particularmente, nós não tivemos nenhum conflito”, afirma. “Foi pela diplomacia”. O cacique se diz satisfeito com o desfecho. “Fomos o único povo indígena no Brasil que em 2003 conseguiu ampliar o território em quase 100%”. A nova aldeia foi batizada de Nova Esperança.
Atualmente, 560 pessoas vivem na TI Rio Gregório. De acordo com Iglesias, o governo do Estado prometeu assistência técnica para as pessoas que fossem até mais perto da estrada e houve um êxodo dos brancos de dentro da terra para a beira, o que acabou ajudando “Ratinho”. “O fato é que ele localmente nunca mexeu com nada”, comenta. “Nós só ouvimos na imprensa”, afirma, em relação às intenções de se explorar madeira nas fazendas.
Apesar do clima de diplomacia, o antropólogo Iglesisas considera a situação nebulosa e prevê conflitos, caso em algum momento o comunicador ou outros latifundiários decidam tirar a proposta do papel, “ainda que em moldes ditos sustentáveis”.
A equipe de reportagem do Programa do Ratinho, do SBT, está desde o início de julho gravando uma série de reportagens sobre o Estado. A “Expedição Acre” deve ir ao ar nesta sexta-feira (23). Segundo o site oficial do governo do Acre, vai mostrar, entre outras questões, “o abacaxi gigante de Tarauacá, a cultura indígena do povo Huni Kuin e a extração de borracha em Xapuri”.
No último domingo (11), o governador Gladson Cameli recebeu o jornalista Arthur Veríssimo e os diretores Valter Leite e Alessandro Almeida em seu gabinete, falou sobre o potencial turístico da região e fez um agradecimento público ao apresentador. “Nossa terra é muito linda”, afirmou. “Temos a Serra do Divisor, o Rio Croa, aldeias indígenas e tantos outros atrativos a oferecer aos nossos visitantes, sem contar a hospitalidade do povo acreano”.