Como uma simples proposta de emenda pode acabar mudando as eleições no Brasil

O que seria uma simples Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para tratar do adiamento das eleições quando houver feriado próximo a elas pode se tornar uma ampla reforma eleitoral.

Em maio, a deputada Renata Abreu (Podemos-SP) foi indicada relatora da comissão especial criada um mês antes pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), para debater a PEC 125/11.

De autoria do deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP), o objetivo do autor era apenas evitar o questionamento da legitimidade dos resultados por causa da evasão de eleitores que viajam em feriados prolongados.

A relatora, no entanto, optou por ampliar a discussão. Para a parlamentar, a população não está satisfeita com o sistema eleitoral atual e é preciso debater métodos alternativos. Em dois meses de trabalho da comissão especial foram dezenas de sugestões de alterações. Entre elas, a do distritão — discussão já levantada anteriormente — e o voto preferencial — modelo de apuração que acabaria com o segundo turno (leia mais abaixo).

Na terça-feira (6), Lira reuniu os presidentes dos partidos de centro e de direita em sua residência oficial para tentar chegar a um consenso e levar a PEC à pauta. Entre os presentes, Gilberto Kassab (PSD), Baleia Rossi (MDB), Bruno Araujo (PSDB), Roberto Freire (Cidadania) e Marcos Pereira (Republicanos).

Não foi possível chegar a um acordo. A grande maioria dos dirigentes partidários é contra mudanças no atual sistema eleitoral, em especial tão perto das eleições. Segundo apurou a CNN, Lira deve se manter neutro. As bancadas estão divididas. Pela legislação, o Congresso tem até outubro para aprovar alterações que sejam válidas já na disputa de 2022.

“Ficou acertado que votamos até o dia 4 de agosto, depois do recesso. Até lá vou trabalhar no convencimento individual dos líderes para ver o que tem adesão e depois finalizar o texto. E decidir se vamos votar as alterações fatiadas ou em votação única”, afirma a deputada Renata Abreu, que também participou da reunião.

Os sistemas de votação em estudo

Segundo a relatora, o grande desafio é que os dirigentes querem manter o sistema atual, enquanto alguns parlamentares preferem o distritão ou o distrital misto. Para a eleição de deputados, o método usado é o proporcional, aquele em que a representação se dá na mesma proporção da preferência do eleitorado pelos partidos políticos.

Os assentos das Casas Legislativas são distribuídos de acordo com a votação total dos candidatos e do partido, o que leva partidos mais votados a eleger candidatos não tão bem classificados.

Tal sistema, segundo cientistas políticos, é capaz de refletir os diversos pensamentos e tendências existentes na sociedade, já que possibilita a eleição da maioria dos partidos políticos existentes, observadas as suas representatividades.

Já o sistema distrital é personalista e tende a agravar a crise de representação, dificultando ainda mais o acesso de grupos politicamente minoritários, segundo especialistas. As cadeiras que cada estado (distrito) tem na Câmara viriam a ser preenchidas pelos mais votados. Em São Paulo, por exemplo, seriam eleitos os 70 mais bem votados, o que beneficiaria os parlamentares ou pessoas influentes já conhecidas.

Renata Abreu discorda desse raciocínio. “Eu, pessoalmente, acho que o distrital misto seria um bom sistema porque mescla o proporcional e distrital. É um sistema de transição para conseguir um sistema mais aprimorado, é legislar para frente para conseguir avanços. Não vejo diferença nas críticas que fazem entre o sistema atual e o distrital. Hoje já existe personalismo. Os youtubers, por exemplo, já são favorecidos com visibilidade”, explica Renata.

No sistema distrital misto, o eleitor vota duas vezes: uma em um candidato do seu distrito (município ou estado) e outra em uma lista de candidatos preordenada pelo partido, ou seja, o voto na legenda. Assim, metade dos parlamentares é eleita por maioria de votos dos distritos – representando demandas locais da população –, enquanto a outra metade das vagas é preenchida pelos candidatos dos partidos mais votados.

O distrital misto tem sido discutido pelo Congresso pelo menos desde 2017, mas até hoje não há consenso. O presidente do Cidadania, Roberto Freire, é contra grandes alterações no sistema eleitoral neste momento.

“O distritão é um projeto de sistema eleitoral que nenhum país sério adota e vai gerar uma anarquia parlamentar, seriam 513 personalidades. É um sistema menos democrático, que vai reduzir o número de partidos”, afirma Freire.

Doutora em Ciência Política e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Graziella Guiotti Testa também questiona o momento para discutir uma reforma eleitoral, sobretudo pelo Congresso ainda estar funcionando de forma híbrida, com o trabalho de comissões e audiências públicas prejudicadas.

“A primeira pergunta que deve ser feita é: qual o objetivo normativo da reforma política? Se o objetivo normativo é que as pessoas compareçam às urnas, como propõe o texto original da PEC, então é bom que se adie as eleições quando houver feriado. Mas isso é uma mudança muito pequena e pontual que serve como justificativa para puxar outros debates que ainda não estão maduros. E nesse momento é difícil uma articulação da sociedade civil para influenciar no processo decisório”, explica Graziella.

O presidente do PSD, Gilberto Kassab, também diz ser contra alterações neste momento e lembra que já tivemos uma reforma eleitoral em 2017. Na ocasião, o Congresso criou um novo Fundo Eleitoral de R$ 1,7 bilhão para substituir as doações de empresas, estabeleceu uma cláusula de barreira (partidos que não tiverem uma quantidade mínima de votos perdem o acesso a recursos a partir de 2019) e proibiu as coligações em eleições proporcionais (de vereadores e deputados estaduais e federais).

“O modelo aprovado em 2017 ainda não foi testado nos estados nem na eleição nacional, apenas nas eleições municipais de 2020. E deu certo. Precisamos aguardar a finalização dessas mudanças”, afirma Kassab.

Ele é contra o distritão e, apesar de ver com bons os olhos o modelo misto, ressalta que são apenas dois meses até o prazo final para mudanças eleitorais antes da data estipulada por lei.

“O distritão é um modelo que acaba com a política, com os partidos, com a representatividade do eleitor. Prevalece o individualismo e ainda facilita o acesso de crime organizado e milícias. Esse modelo não existe em lugar nenhum do mundo. Para o distrital misto, precisaríamos de um grupo preparado para debater no Congresso”, diz o presidente do PSD.

As mudanças em discussão

As próximas duas semanas serão de muita conversa entre líderes partidários e parlamentares para tentar chegar em um consenso. Confira as alterações que estão em discussão na PEC 125/11:

Cota de gênero — Essa proposta está sendo debatida com a bancada feminina da Câmara dos Deputados. Apesar de, em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter determinado aos partidos políticos a obrigatoriedade de reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Eleitoral para as candidatas, as deputadas acreditam que a medida ainda não foi suficiente para o equilíbrio de gênero no Parlamento. A intenção é fazer uma reserva obrigatória de cadeira para mulheres que deve se iniciar em 15% e chegar até 22% por estado.

Plebiscitos — Inclusão de plebiscito durante o processo eleitoral para consulta de diversas mudanças no sistema eleitoral, incluindo a mudança para parlamentarismo. Para a professora Graziella Testa, como nossas eleições são concomitantes e já têm grande número de candidatos que precisam ser votados na mesma eleição, aumentar a quantidade de decisões em um mesmo pleito pode prejudicar o processo decisório. “Normalmente, a eleição legislativa já fica prejudicada porque os debates são voltados ao Executivo. Se incluir uma decisão importante como essa de mudança de sistema eleitoral, pode confundir o eleitor.”

Sistema distrital misto ou distritão — Para além das vantagens e desvantagens de cada tipo de votação, a professora ressalta a dificuldade que o Brasil tem em consolidar um sistema eleitoral. “A ditadura militar dificultou muito a consolidação do nosso sistema partidário e essa questão do personalismo muito forte na nossa política tem sido particularmente perigosa nessa última década porque o populismo se tornou realidade não só no Brasil como em outros lugares do mundo. Então, o problema maior do distritão ou distrital misto é que ambos são sistemas mais personalistas existentes do que o proporcional de lista aberta, que temos agora. Nesse sentido, o distrital misto é menos prejudicial do que o distritão, mas os dois seriam um retrocesso porque o personalismo político é um problema que precisa ser resolvido”, avalia a professora da FGV.

Voto preferencial — Proposta de autoria da deputada Renata Abreu, que tem por objetivo acabar com o segundo turno e diminuir a polarização. Cada eleitor poderia votar em apenas um ou escolher múltiplos candidatos por nível de preferência, numerados do melhor para o pior. Quem receber 50% dos votos é eleito. Porém, se não houver vencedor majoritário, é feita nova contagem, eliminando o candidato menos votado. Os eleitores que colocaram o eliminado em primeiro lugar de suas listas terão suas segundas preferências consideradas. Assim, os candidatos que aparecem na sequência do ranking dos eleitores mantêm suas chances, porque o processo de recontagem continua até que haja um vencedor com mais da metade dos votos.

“Nas últimas eleições vimos a população votando em quem não queria para não correr o risco de que fosse eleito um desafeto ou em quem tinha mais chance e não em seu preferido. Somando os milhões de eleitores que não compareceram às urnas aos milhões que votaram nos demais candidatos, constatamos um número elevado de eleitores que não se encaixou na polarização entre os dois colocados para o segundo turno, optando pelo voto útil para eleger o que eles entendiam, muitas vezes, ser os menos piores, mesmo com esses carregando altas taxas de rejeição popular”, explica a relatora da PEC.

Os críticos a este sistema, no entanto, afirmam que, na prática, acabam eleitos candidatos que já estão na primeira ou segunda colocação, além de considerarem o sistema de votação confuso, podendo afetar a credibilidade do processo eleitoral.

Inclusão dos senadores na cláusula de desempenho — A cláusula de desempenho dos candidatos prevê um número mínimo de votos para um deputado federal, estadual ou distrital se eleger. A intenção é inibir os casos em que um candidato com poucos votos seja eleito com a ajuda dos “puxadores de votos” do partido ou da coligação. No entanto, essa legislação atual não abrange senadores.

“A inclusão dos senadores na cláusula de desempenho, eu acho interessante se ela vier amarrada com algum critério de fidelidade partidária no Senado. Hoje, a regra de fidelidade na Câmara é muito estrita, mas no Senado, o mandato é completamente do parlamentar. E isso tem gerado um leilão, senador que muda de partido muito rapidamente, e isso não é interessante. O problema de estabelecer a cláusula de barreira no Senado sem ter algum critério de ligar o senador ao partido é que, na verdade, vai aumentar esse leilão. O fato de um senador mudar de partido vai ser muito valioso porque facilitaria esse partido cumprir a cláusula”, explica Graziella Guiotti.

Voto facultativo — Outro ponto ainda incerto da reforma, que está sendo discutido por emendas, e é polêmico. “Uma consequência benéfica do voto obrigatório é que torna os partidos políticos menos clientelistas. Além disso, aumenta a participação de mulheres tanto votantes quanto eleitas. Por outro lado, temos várias evidências internacionais que denotam que o voto facultativo diminui a participação eleitoral. E, ao contrário do que as pessoas imaginam, é o voto facultativo que faz com que o eleitor se informe menos”, afirma a cientista política.

Candidaturas avulsas (sem filiação partidária) — É outra discussão que ganhou força nas eleições de 2018, mas segue sem consenso. Ainda está em discussão por emendas e não no texto final da relatora. “A candidatura avulsa vai no mesmo sentido do personalismo já citado. É um problema para a governabilidade porque cada pessoa se torna um partido. Serão 513 partidos na Câmara? É possível? Eu acho curioso esse debate porque estávamos indo em outro sentido de debate de tentar diminuir a fragmentação e tentar gerar alguma coesão interna dos partidos e possibilitar uma governabilidade mais orgânica, que de fato faça sentido com a ideologia dos partidos e com a representatividade do eleitor. A candidatura avulsa vai em outro sentido e fragmenta ainda mais o sistema”, opina a professora.

Endurecimento das regras de fidelidade partidária — “Se for incluir os senadores nas regras e, em alguma medida, cargos do Executivo, seria muito interessante. As mudanças sobre mudança de partido acabaram acontecendo no Judiciário. O ideal seria, de fato, que uma alteração na legislação que evitasse o troca-troca partidário viesse do Legislativo”, avalia Graziella.

Diminuição de assinaturas em projeto de iniciativa popular – Atualmente, para apresentar um projeto de lei de iniciativa popular à Câmara dos Deputados é preciso reunir a assinatura de, no mínimo, 1% do eleitorado nacional, distribuído por pelo menos cinco estados, com não menos de 0,3% dos eleitores em cada um deles. “É uma proposta interessante para aumentar a participação popular. Hoje em dia é muito difícil falar que um determinado projeto é de iniciativa popular porque hoje é muito mais fácil procurar um parlamentar para encampar e apresentar esse projeto. O critério hoje de número de assinaturas é quase proibitivo”, afirma a professora.

Outras discussões sobre partidos e eleições

Além da PEC relatada pela deputada Renata Abreu, há ainda a retomada de discussão de um projeto de lei de 2015, do Senado, que institui as federações de partidos políticos a partir de mudanças na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/95) e na Lei das Eleições (Lei 9.504/97). O PL 2.522/15 teve o regime de urgência aprovado em junho e também deve entrar na pauta no segundo semestre.

Por meio de federação de partidos, as legendas associadas agem como se fossem uma única legenda, tanto nas eleições quanto durante a legislatura. Seria permitida a união de partidos por quatro anos, como um mecanismo para transpor a cláusula de desempenho aprovada em 2017 que poderia salvar da extinção as siglas pequenas.

Outra discussão relacionada que deve entrar em pauta em agosto é o Código Eleitoral, um projeto ainda não apresentado oficialmente e que busca unificar em uma só lei as várias normas previstas em leis ordinárias e em resoluções do TSE.

A deputada federal Margarete Coelho (PP-PI) é relatora do grupo de trabalho de discute o projeto. Um texto preliminar foi disponibilizado para as bancadas com 938 artigos. Ele trata, dentre outros temas, das regras de criação, fusão e extinção de partidos, regras de filiação partidária, redefine quantidade de candidatos proporcionais, regras de registro de candidatura, regras de propaganda partidária e eleitoral e tipifica crimes eleitorais. Um dos pontos polêmicos refere-se à possibilidade de empresas privadas serem contratadas pelas siglas para auditarem a contabilidade partidária.

Ainda há a sugestão da criação de um “percentual de acerto” dos institutos nas últimas eleições, que deverá ser divulgado junto às pesquisas. Além disso, as pesquisas eleitorais não poderiam ser divulgadas no sábado de véspera da eleição e no dia do pleito.

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