‘Nos fez repensar sobre a vida’: conheça a jornada do casal que visitou todos os 75 parques nacionais do país; fotos

Em mais de três anos de expedição, Letícia Alves e Dennis Hyde percorreram cerca de 100 mil quilômetros e documentaram as belezas e os desafios da biodiversidade brasileira

Na noite de 18 de outubro de 2024, sob uma lua cheia que iluminava o céu de Fernando de Noronha, a psicóloga Letícia Alves, de 40 anos, e o economista Dennis Hyde, de 45, encerraram uma jornada que durou exatos três anos, quatro meses e 13 dias. Os dois, com os pés na formação rochosa do Parque Nacional Marinho de Noronha, admiravam o sol se pôr no oeste, mergulhando no horizonte, enquanto a lua nascia no leste.

— Foi um momento de muito silêncio e introspecção — relembra Letícia. — Me perguntei: “Quem sou eu depois de tudo isso? Como vou voltar para São Paulo?”

Eles viajaram mais de 90 mil quilômetros de carro e caminharam 3.500 quilômetros em trilhas — Foto: Acervo pessoal
Eles viajaram mais de 90 mil quilômetros de carro e caminharam 3.500 quilômetros em trilhas — Foto: Acervo pessoal

A indagação marcou o fim da expedição “Entre Parques”, na qual o casal percorreu todos os 75 parques nacionais do Brasil. Eles viajaram mais de 90 mil quilômetros de carro, o equivalente a mais de sete voltas ao mundo pela Linha do Equador, e caminharam 3.500 quilômetros em trilhas, atravessando todos os seis biomas brasileiros: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampa. A expedição, no entanto, foi muito mais do que uma viagem. Para Letícia e Dennis, foi uma transformação pessoal e “um chamado” à preservação ambiental.

O casal concedeu a entrevista enquanto seguia para vender o carro, comprado em fevereiro de 2021, que os acompanhou ao longo de toda a expedição, percorrendo 96.838 quilômetros.

‘Alguém precisava documentar’

Tudo começou em 2018, quando, em uma viagem ao Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, eles perceberam que a maioria dos brasileiros desconhece os espaços do gênero no país. A curiosidade sobre essas áreas protegidas levou Letícia a suspender seus atendimentos no consultório e Dennis a deixar o trabalho no escritório, embarcando juntos na missão de conhecer os 75 parques nacionais do Brasil.

— Foi um chamado — conta Dennis, em entrevista ao GLOBO. — Alguém precisava documentar essas riquezas que temos.

Com o plano traçado, o casal deixou para trás a vida que conhecia e, em 5 de junho de 2021, Dia Mundial do Meio Ambiente, partiu de São Paulo rumo ao Parque Nacional de Itatiaia, o mais antigo do país. O que começou como uma missão pessoal de conhecer as riquezas naturais do Brasil logo tomou proporções maiores.

Em mais de três anos de expedição, casal percorreu cerca de 100 mil quilômetros — Foto: Acervo pessoal
Em mais de três anos de expedição, casal percorreu cerca de 100 mil quilômetros — Foto: Acervo pessoal

— Não sabíamos que isso se tornaria um trabalho. É um privilégio e levamos isso com muita responsabilidade — reflete Dennis, que vê como desafio, agora, encontrar um equilíbrio. — Precisamos achar uma forma de nos sustentar financeiramente de novo. Queremos fazer mais e trazer os parques para o imaginário das pessoas. Talvez, criar uma fundação ou instituto para apoiar os parques nacionais.

— Nunca imaginamos que fôssemos trabalhar com conservação e educação ambiental. Fomos aprendendo coisas com pessoas, animais e a natureza — acrescenta Letícia.

Imediações do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, entre a Bahia e Minas Gerais, mostra o avanço da monocultura — Foto: Acervo pessoal
Imediações do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, entre a Bahia e Minas Gerais, mostra o avanço da monocultura — Foto: Acervo pessoal

O contraste das paisagens

Durante a jornada, Letícia e Dennis foram marcados tanto pela beleza dos parques nacionais quanto pela “devastação” encontrada fora dessas áreas protegidas. Eles testemunharam o papel crucial das unidades de conservação como refúgios da biodiversidade, mas também presenciaram o impacto da exploração do território.

— Vimos grandes belezas dentro dos parques, mas muita devastação fora — lamenta Dennis. Ele relembrou o trajeto entre São Paulo e Belém, que conta com vastas áreas de monocultura. — A paisagem era sempre igual, monótona. Só soja, cana-de-açúcar e pastagens. Mal se vê florestas.

Limite do Parque Nacional das Emas, em Goiás, com a monocultura — Foto: Acervo pessoal
Limite do Parque Nacional das Emas, em Goiás, com a monocultura — Foto: Acervo pessoal

Essa monotonia contrastava com a beleza de parques como o Catimbau, em Pernambuco, que tem o segundo maior sítio arqueológico do país, e Boa Nova, na Bahia, que abriga mais de 400 espécies de aves.

— O que sobrou, basicamente, são as unidades de conservação. Precisamos protegê-las com muito cuidado. Onde passamos e abrimos acessos, criamos “progresso”. Porém, isso frequentemente traz facilidades que acabam incentivando o desmatamento e a ocupação desordenada — alerta Dennis.

Ele destacou, por exemplo, a realidade na região do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), onde grandes propriedades rurais transformaram o ecossistema nesse cenário monótono.

— Você encontra trechos onde, ao percorrer 60 quilômetros de estrada, não se vê nada além de soja. O que antes era uma área de biodiversidade riquíssima, com milhares de espécies convivendo, hoje se resume a uma única espécie: a soja. Não estou dizendo que não precisamos dela, mas é fundamental buscar um equilíbrio — afirma.

Desafios de transformar a estrada em lar

Ao longo da expedição, Letícia e Dennis enfrentaram os desafios de viver na estrada e adaptar-se a uma rotina de constante movimento.

— No primeiro ano da expedição, usamos o trailer. No segundo ano, mudamos para um mini trailer, e depois só viajamos de carro normal. Morar em um trailer é legal, mas é um grande desafio. É como jogar uma casa no meio de um terremoto — relembra Dennis.

Ao longo da expedição, Letícia e Dennis enfrentaram os desafios de viver na estrada — Foto: Acervo pessoal
Ao longo da expedição, Letícia e Dennis enfrentaram os desafios de viver na estrada — Foto: Acervo pessoal

Para Letícia, o maior obstáculo foi lidar com a falta de privacidade.

— Um grande desafio é estar sempre em movimento. Nessas expedições, as pessoas vão com uma ideia de férias, que não é. É um trabalho interno. O meu maior momento de privacidade, por exemplo, era uma rede — afirma.

Fernando de Noronha: o início e o fim

Para Letícia, Fernando de Noronha teve um significado especial. Foi o primeiro parque nacional que visitou na vida, aos 10 anos de idade, e, 30 anos depois, foi onde a expedição chegou ao fim. Mas, agora, a ilha foi vista com outro olhar.

Aos 10 anos, Letícia visitou Fernando de Noronha pela primeira vez, o mesmo lugar onde, três décadas depois, concluiu a expedição ao lado do marido — Foto: Acervo pessoal
Aos 10 anos, Letícia visitou Fernando de Noronha pela primeira vez, o mesmo lugar onde, três décadas depois, concluiu a expedição ao lado do marido — Foto: Acervo pessoal

— Noronha é uma aula sobre biodiversidade. Não é só glamour. Tem espécies de aves em extinção e uma complexidade que só com maturidade conseguimos entender — explica a psicóloga.

O casal passou 15 dias na ilha, assim como em todos outros parques nacionais, documentando suas experiências para a websérie “Entre Parques”, que estreia no próximo dia 21, com oito episódios organizados pelos biomas do país. Os episódios serão publicados nas redes sociais do Instituto Semeia, organização que apoia o projeto.

Transformação pessoal

A jornada transformou profundamente o casal, que se tornou, além de porta-voz dos parques nacionais brasileiros, testemunha ocular das belezas e dos desafios da biodiversidade.

— Essa expedição nos fez repensar sobre a vida. Nós vemos tipos de vida tão diferentes. Eu, como psicóloga, sempre estive embrenhada na natureza humana. Hoje, eu sei o que é olhar no olho de um animal e entender a vida dele. É transformador — conta Letícia, emocionada.

Dennis destaca a preocupação do distanciamento da sociedade com a natureza e o privilégio de ter convivido com a biodiversidade brasileira:

— Todo mundo precisa vivenciar mais o mundo natural. Todos temos que aprender sobre nossas belezas. Quando nos deparamos com um cupinzeiro luminoso, uma tartaruga que não nos ataca e se relaciona com a natureza, entendemos que somos parte disso. No entanto, muitas vezes a gente se distancia. Quem tiver possibilidade, visite unidades de conservação. Precisamos fazer delas destinos-desejo.

Como forma de orientar e disponibilizar as fotos, vídeos, mapas e informações sobre os 75 parques nacionais, o casal criou o site Entre Parques. Nele, as pessoas interessadas em conhecer as áreas podem se organizar. Além do conteúdo online, o casal também disponibilizou o e-book “Três motivos para visitar os parques nacionais brasileiros”.

Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, onde o casal admirou a última lua cheia da expedição — Foto: Acervo pessoal
Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, onde o casal admirou a última lua cheia da expedição — Foto: Acervo pessoal

De volta à cidade, mas com a natureza no coração

Agora, o desafio de Letícia e Dennis é se readaptar à vida em São Paulo.

— Ainda estamos aprendendo a colocar tudo isso em palavras. Evoluímos enquanto seres humanos, junto com outros seres — disse Letícia.

Naquela noite de outubro em Fernando de Noronha, sob a lua cheia e o silêncio do Parque Nacional Marinho, Letícia resumiu o impacto da expedição:

— Uma sensação de dever cumprido. Nosso mundo, hoje, é maior — finalizou a psicóloga.

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